BARTHES, Roland. A Câmara Clara: notas sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
A dificuldade de exprimir o que ele sente ao ver sua própria imagem numa fotografia é profundamente difícil de captar. Não se trata exatamente de “me ver” na fotografia. Ainda assim, parece justo apontar e dizer “esse sou eu”. Esse sou eu, mas em espectro. Esse sou eu, mas como objeto. Esse sou eu, mas como morto.
Me ganha, a partir da página 21, quando começamos a pensar na naturalidade com a qual nos damos hoje a sermos fotografados. Entregamos nossa “imagem”-corpo para objetificação. Isso nos parece razoável e desejável na prática, antes de ser dito. Após o objeto se formar, como nosso espectro, como o eu-como-morto, esse objeto é passível de posse. O objeto, agora possuído, não parece diferir-se de qualquer outro objeto (um terreno, uma carta, um par de sapatos, um cachimbo). Se o objeto é tomado e usado por mais alguém além do dono, isso se torna um problema. Transformamos a presença em objeto e cobramos impostos sobre a presença da morte. Por isso a apropriação dos 80’s soava tão “errada” ?
Em sua experiência, Barthes separou dois principais modos, ou sentimentos, relativos ao contato com a fotografia que, de alguma maneira, lhe chamavam atenção. Como numa “hierarquia de pessoalidades”, ele nos fala de studium e de punctum, como de “gostar” e “amar”. Não devemos pensar no usual das palavras, mas nos sentimentos que suscitam. Studium se aproxima, assim, de um interesse compreensível, de uma aproximação pouca mais que formal e interpretativa, uma aproximação que responde às funções da fotografia (num sentido público, social e impessoal), a saber, informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade (p. 34). O Punctum, por sua vez, nos indica o sentimento de toque indefectível, de atravessamento pessoal, como uma agulha que vai além da superfície, te fere, te punge. Studium e Punctum não seriam características identificáveis em fotografias, mas relações entre o espectador e o espectro.
Barthes segue em comparativos, que quase sempre giram sobre eixos parecidos com os do Studium e do Punctum, porém, mais íntimos. As “surpresas” do contato inicial, a analogia com o teatro, baseada na presença da morte como objeto (p. 36) e dessa mesma analogia, aquela com a máscara que veste de verdade a interpretação (p. 39). Ainda aqui, nos ateríamos à fotografia distante dos mares digitais, nos quais “captar” diz mais que “fotografar” e publicar não se relaciona com Studium e com Punctum, pois quem “faz” a imagem, hoje, não possui a especificidade do fotógrafo. Devemos nos ater, nessa leitura, ao universo do qual Barthes provem. Com sua escrita tão pessoal, isso não pode ser um problema.
Tantas fotos nos interessam não por um detalhe que nos atravessa (Punctum), mas por algum interesse externo a foto e quase sempre pessoal, o que queremos saber ou sentir (Studium). Nos interessamos por uma foto porque nos transmite informação sobre outro lugar, outra cultura, ou por nos despertar a ideia de termos acesso ao oculto, como na pornografia. Nesses casos o interesse está sempre em algo externo à imagem, não em seu interior ou na necessidade de que o veículo seja “aquela” fotografia. A esse espelhamento repetitivo e enfático da fotografia com seu exterior (o que realmente nos interessa e que acessamos na imagem), Barthes chama de “unário”: toda a fotografia apresentaria um espaço unário, mas, algumas possuiriam detalhes que, para o spectator, surge num “susto”, ao acaso, e que para o operator pode representar uma escolha, o momento da captação “certa”. “O que posso nomear não pode, na realidade, me ferir.” (p. 53) O que aparece como Punctum aos olhos do spectator somente parece poder aparecer daquele modo. Estranhamente, o Punctum revela também alguma falta, mas não é algo simplesmente “externo” como o Studium. O Punctum sobrepõe o “ponto cego” ao que é mostrado e faz com que doemos algo a foto. Ao sentirmos a presença do Punctum, desse detalhe que nos atravessa, colocamos algo nosso, que não está permanentemente na fotografia, mas sim entre o spectador e a imagem, sem excluir seu Studium
Na segunda parte do ensaio a inevitável condição subjetiva do contato com a imagem fotográfica aparece em primeiro plano. Barthes apresenta um caso pessoal, o reencontro com a memória de sua mãe. A especificidade do caso nos ajuda a aceitar o que há de “mais” numa imagem fotográfica que, não necessariamente, se aplica em termos de representação visual acessível formalmente. A imagem descrita pelo autor traz sua mãe ainda criança. Essa seria a representação de um tempo não vivido pelo spectator, mas compartilhado nos desdobramentos mais íntimos e inevitavelmente posteriores ao momento da operação fotográfica. “Sou o ponto de referência de qualquer fotografia, e é nisso que ela me induz a me espantar, dirigindo-me a pergunta fundamental: por que será que vivo aqui e agora?” (p. 79) O Espanto de Barthes talvez seja condizente com um período bem curto de tempo entre as primeiras fotografias e o impacto do desaparecimento dos primeiros seres fotografados. Por essa razão, talvez, as imagens coloridas e as fotografias captadas em tempo próximo não lhe causem impacto suficiente para gerar Punctum/Studium ou enquadrarem-se na mesma lógica mítica. Nada disso parece importar quando a fotografia é apenas mais um dos muitos indícios da realidade. “A fotografia é um testemunho seguro, mas fugaz, de modo que, hoje, tudo prepara nossa espécie para essa impotência: não poder mais, em breve, conceber, afetiva ou simbolicamente, a duração (…) E sem dúvida o espanto do “isso-foi” também desaparecerá. Já desapareceu. Sou, não sei porquê, uma das suas últimas testemunhas (testemunha do inevitável), e este livro é o seu traço arcaico.” (p. 86). Se Barthes reconhece que a “antiga rememoração” não é possível após o sumiço desse espanto, devemos reconhecer também o seu Punctum não mais como um detalhe da foto, mas como um atravessamento de tempos que atinge pontos no spectator e que podem ser alheios a coisa “posada”. O fantasma foi e será. Há, certamente, diferenças entre fantasmas de idéias, fantasmas de objetos, de paisagens e de pessoas. No último caso, a imagem fotográfica ainda seria capaz de retratar, iluminar e gravar o modo de ser não-pensado de alguém, o seu “ar”.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.