GROI˘S, Boris. Art Power. Cambridge: MIT Press, 2008.
Texto de Rodrigo Hipólito
Se a primeira coisa que dissermos sobre arte moderna e contemporânea é que ambas são fortemente pluralistas, a segunda fala deveria elucidar que esse pluralismo facilita a valorização de artistas por discursos específicos e ajuda a regular a balança de poder do mercado de arte. Groys nos lembra de que uma vasta parcela da produção de arte que não se presta nitidamente ao papel de mercadoria, mas sim de propaganda política e ideológica, é excluída das teorias da arte. Tal exclusão somente é possível se ignorarmos que o trabalho de arte como produto passível de circulação em um livre mercado simbólico também apresenta defesa ideológica. A capacidade de tais produções de simultaneamente apresentarem o objeto de outra coisa que não o objeto, de afirmar e negar ideias, talvez seja uma visão mais adequada desse cenário. “The field of modern art is not a pluralistic field but a field strictly structured according to the logic of contraction.” (p. 1).
Apesar de, aparentemente, o espectador ser convidado, pelos trabalhos de arte contemporânea, a experimentar um campo infinito de interpretações plurais, na realidade, a única interpretação possível para um objeto-paradoxal é uma interpretação paradoxal (p. 3). A dificuldade de contato com tais produções residiria, em grande parte, numa “falta de vontade” para aceitar o paradoxo desses objetos. Eles são o que negam ser. Eles são uma afirmativa que nega o sistema que lhes confere valor como mercadorias. Para o autor, a arte moderna (e contemporânea) pode ser produzida como mercadoria e como ferramenta política. No segundo caso, é comum que os trabalhos sejam considerados “não-genuínos” como arte. Essa aparente luta contra o poder da ideologia apresentada em objetos que negam a “imagem” que incorporam (objetos-paradoxais) se dá pelo aparecimento de uma nova “imagem” (que toma o poder), a “imagem” da crítica da “imagem”.
Temos então uma preocupação com o modo de fazer e pensar arte em meio a disputas de temporalidade, ideologias, instituições e modos de produzir. Entende-se, nessa preocupação, que não há uma negação da autonomia da arte. Isso se pensarmos que o mundo da arte obedece suas regras, mas não ignora as regras que extrapolam suas fronteiras. Procuramos, no cenário das artes, sob uma visada inevitavelmente histórica, essa equação dos direitos de forma e concepção. Há, aparentemente, maneiras de se pensar em trabalhos “bons” e em trabalhos “ruins”. Groys tenta, nesse sentido, ir além das concepções de teorias institucionais. Para isso, propõe que pensemos um museu de arte, em ligação com a História da Arte, por um filtro de intenções que privilegia o “novo”. Exploramos, então, o sentido de “novo” e do “museu” para a História da Arte enquanto questionamos essa mesma história como algo possível para a atualidade.
A existência do “novo” nas artes depende profundamente do reconhecimento das formas do passado e de suas repetições. Nesse sentido, o museu moderno executa uma função primária para o contemporâneo, pois organiza e atira para o interior de uma “atemporalidade” simulada as coisas extirpadas do mundo banal (mortal e passageiro). Essa “guarda”, contraditoriamente, executa o sacrifício de tais coisas banais. A coisa sacrificada, tornada sacra, agora morta e em parte inacessível ao público por contexto, nos diz não o que é o “novo”, mas o que não é o “novo”. O museu coleta o “novo” e o sacrifica; nessa cena, a postura mais contraditória (paradoxal) está no desejo dos artistas de fazer o “novo que possa ser reconhecido”. O museu “permite” o reconhecimento, permite que haja o “novo”, na medida em que o mata. Assim, o “novo” é o que está vivo. Aí encontramos as principais perguntas de Groys: “Why does arte want do be alive rather than dead? And what does it means for art to be alive, or look as if it were alive.” (p. 23) Uma primeira resposta vem com a analogia do museu com uma igreja (ambos guardam o que foi sacrificado): para se tornar santo, antes é preciso sofrer na carne, do contrário, você será sempre uma boa pessoa e não haverá espaço para você nos arquivos da memória divina (p. 24).
No entanto, para a arte contemporânea, produzir o “novo” não significa apenas produzir algo que não possua as formas passadas, mas também algo que não repita as velhas diferenças entre objetos de arte e objetos do quotidiano. Para o autor, a grande diferença a ser considerada nessa dupla requisição diz respeito ao tempo. Ao ver um objeto do quotidiano, nós antecipamos sua morte (sua vida curta). “A finite live expecting is, in fact, the definition of ordinary life” (p. 35).
A solução, num primeiro momento, ainda encontra-se no museu (e em sua atualização metodológica). O “novo”, como aquilo que não é apenas diferente do velho, mas que é reconhecido como “o mesmo” pelos velhos e diferente pelos “outros” (Cristo em Kierkegaard), deve ser ainda não sagrado (não sacrificado, embora Groys não use essa palavra). Nesse sentido, poderíamos dizer o que estava há pouco vivo e mostrar o “mesmo” como diferente aos olhos de quem não vê nesse “mesmo” o passado, pois deposita nele o surgimento de “outro”.
The museum provides the possibility of introducing the sublime into the banal. In the Bible, we can find the famous statement that there is nothing new under the sun. That is, of course, true. But there is no sun inside the museum. And that is probably why the museum always was—and remains—the only possible site of innovation. (p. 41)
A figura do curador destaca-se nesse cenário de vanguardas e constantes preocupações em apresentar o “novo”. Se, no século XIX, o embrião do curador moderno possuía o poder de conferir o status de arte a objetos provenientes de contextos os mais diversos (ritualísticos, econômicos, políticos e sumariamente históricos), as vanguardas do início do século XX abocanham esse dom. O gesto duchampiano é paradigmático também por essa razão. Com a tomada do poder de escolha como gesto artístico, o curador passa a diferenciar-se do artista por não poder outorgar a qualidade artística, mas somente historicizar ou, como já dito, “matar” o objeto de arte. Trabalhos de arte “curados” para uma exibição seriam depostos do trono da atualidade e tornados documentos do que ocorreu como trabalho de arte. Algumas das propostas da crítica institucional (Hans Haacke, Marcel Broodthaers) jogam exatamente com esse poder mortífero do curador moderno. A instalação como estratégia de avanço na batalha iconoclasta/iconófila dá aos artistas a carta mágica com o poder de “empalhar” trabalhos de arte (e qualquer outra coisa) para que componham outro trabalho de arte.
A instalação aparece como o Megazord da arte contemporânea. Com a estratégia da instalação, vemos o curador perder mais uma de suas camadas de poder. Artistas e curadores promovem um estranho jogo, um iconoclasma que derruba antigos ícones, mas não por serem perturbadores ou perniciosos e sim para produzir novas imagens a partir de seus restos (novos ícones, novos ídolos). Essa iconofilia resultante da iconoclastia moderna fetichiza objetos de arte (e artistas) tanto quando os mata (curador) quanto quando os extirpa do quotidiano (artista). Se os curadores são enfraquecidos entre o surgimento das vanguardas históricas européias e os anos 1960-70, também são “convidados” a estender seu papel.
Por um lado, vemos a tradicional distinção entre objetos de arte e não-arte: a crença de que alguns objetos seriam “habitados” pela arte e outros teriam sua “ausência”, como ícones animados por deuses e outros vazios de espíritos. Por outro lado, poderíamos pensar numa prática de “art-atheísm” (p. 41), para a qual objetos de arte documentam um estado “temporário” de artisticidade. Aquele que realiza a profanação dos objetos de arte para que a exibição continue chamaríamos de “curador independente”, algo que também é um artista. Se o curador moderno encobria a curadoria e alimentava a crença de uma suprema autonomia da obra de arte (que fala por si mesma) o “curador independente” se diferenciaria por ser explícito em sua prática. Se antes o público geral poderia se incomodar por não “entrar em contato com a arte em si”, mas somente com o discurso historicizante e profanador de um curador que se esconde, o explícito “ateísmo” da curadoria independente inverte os pólos e desmistifica os ícones, os seculariza para criar outros (discurso). Esse discurso, posto em primeiro plano e formado pela dessacralização da arte habitada pela deusa Arte, talvez não crie um novo ícone religioso, mas certamente promove ícones ideológicos.
De maneira simplista, o curador moderno seria um purista-essencialista e o curador independente um pluralista salvaguardado por teorias institucionais. Ambas as posições são colocadas em cheque quando a condição de acontecimento se alastra descaradamente para as imagens da arte. Apesar de deixar transparecer aquela típica descrença de sua geração com a qualidade das relações íntimas com as tecnologias da comunicação mais recentes, Groys acerta ao sublinhar algumas consequências do uso (ou do domínio) do digital na execução de propostas de arte.
A imagem digital não possui um original de mesma natureza. Desse modo, como já afirmado por uma rápida olhada para Flusser, trata-se de uma cópia sem original (p. 84). Seria o mesmo que dizer que não há aqui algo como uma cópia, pois não pensamos exatamente como é possível uma cópia ser fixamente original. Assim, diríamos que o digital transforma, pela exibição única, cópias, imediata e temporariamente, em originais (p. 90).
Como um ícone bizantino (e esse é um péssimo comparativo), a imagem digital toma para si a responsabilidade de transportar algo do reino do invisível (código), para o reino do visível (tela). Nesse sentido, consideraríamos a exibição de uma imagem digital como uma performance (e esse é um bom comparativo), um evento e como evento, esta teria em cada apresentação um acontecimento original e finito. Essa condição circunstancial da imagem digital inverte uma importante balança: o artista, que antes gastava longo tempo de trabalho para fornecer uma imagem que poderia ser consumida de relance, agora controla o tempo de observação e muitas vezes pode retirar a posição “dominante” do público/espectador (como quem contempla).
Em vários sentidos esse ato de performance é um ato de profanação, de tornar carnal e temporal. “The visualization of the invisible is the most radical form of its profanation” (p. 85). O que é razoavelmente condizente com esse “art-atheísm”. Tal nível de profanação de um meio que já nasce profanado nos leva a questionar alguns limites relativos a re-exibição ou re-apresentação de trabalhos de arte (ou de qualquer espécie de produção comercial).
The non-identity of video images also presents itself at another, as it were, deeper technical level. As has already been said: If one changes certain technical parameters, one also changes the image. Can one perhaps preserve something of the old technology so that the image remains self-identical through all the instances of its display? But to preserve the original technology shifts the perception of a specific image from the image itself to the technical conditions under which it was produced. What we primarily react to is the old-fashioned photographic or video recording technology that becomes apparent when we look at old photographs or videos. The artist did not originally intend to produce this effect, however, as he lacked the possibility of comparing his work with the products of later technological developments. (p. 89)
Um dos principais ganchos do discurso de Groys está na determinação da arte das vanguardas modernas como uma iconoclastia que alimenta (ou abre margem) para a iconofilia atrelada aos tempos atuais. Nesse sentido, surge a comparação entre o uso das mídias recentes e do poder da imagem pelo terrorismo (e o contraterrorismo, ou terrorismo de estado) e seu uso pelos artistas. Em ambos os casos, termos como “estratégia”, quebra de tradições, ataque ao sistema… são usados num tom “vanguardista” que não nega a sua origem militar. Em ambos os casos a técnica é explorada e subvertida até seus limites. Porém, se o comportamento vanguardista na arte tende a iconoclastia, o uso da imagem com uma “caracterização artística” tende a iconofilia. Groys vê aí uma resposta a nossa sede iconófila que a arte e a crítica de arte não podem saciar. Mesmo se desconsiderássemos a disparidade numérica entre as imagens “não artísticas” na mídia e as artísticas, ainda teríamos um problema de intenções. As imagens museificadas (institucionalizadas) como arte já falam das comparações passado/presente, enquanto as não artísticas seriam um alimento mais sedutor para a fome iconófila, pois falam de (e mostram) situações do agora, com margem apenas para o presente/futuro. Esse ressaltar do presente tornaria essas imagens não artísticas mais reais e, talvez por isso, mais suculentas.
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