.
Texto no caos[1]
Texto de Fabiana Pedroni
Arrume sua biblioteca. Limpe os livros. Catalogue. Descarte, não, não descarte. Descarte! Não, você não pode. Lembra-se de quando este livro chegou à sua biblioteca? Quando ela ainda nem era uma biblioteca?
Se um dia eu me mudar, no sentido de deslocamento de habitat (tenho implicado com a amplitude do termo mudança, usado sem mais nem menos, nem pela metade), terei mais trabalho para levar todos estes corpos que as minhas panelas. Pra que panelas…
E essa escrita desenfreada que mais parece uma fuga que uma solução? Cada um tem suas fugas… Eu gosto de escrita, eu gosto de três pontos (não são reticências, desculpe), eu gosto de organização. Mas eu não gosto de linhas. Veja que contraditório. Vim escrever sobre poesia e linhas, mesmo que em minha sala pouse um grande emaranhado de linhas (entrenós). A linha, aquela que a gente estende, brinca, costura, amarra, solta, faz bagunça, essa sim , ela é muito gostosa (Como fuga, hoje, estou cheia de intervalos. Paro para dizer apenas que gosto desta palavra. Não entendo o porquê de algo ser “gostoso” ter se tornado uma vulgaridade. Vulgar? Vulgaridade… pense nisso). Agora, a linha, aquela que segue milimetricamente reta, que constrói a pauta, ah, essa me irrita (mudanças… minha escrita tem mudado para uma escrita oral, cheia de interjeições. Não sei se isso durará, mas até que… não, ainda não sei se gosto)[2].
Voltemos à linha. Ou não… isto é apenas uma fuga (Arrume a biblioteca!). Eu gosto das linhas que pautam alguns manuscritos medievais, como o Beatus de Facundus. Às vezes as linhas são irritantes, mas às vezes elas quase não existem, criam uma margem que pede para ser ultrapassada. São linhas feitas em ponta seca, com o corte na pele (pergaminho). Bem, meu irmão é da área de exatas (detesto divisões da vida e do mundo em áreas); ele, teoricamente, segundo minha visão de alguém de humanas (claro, seres humanos, bla bla bla),[3] deveria gostar de linhas. Daquilo que é exato, que começa e termina num ponto nivelado. Talvez ele até goste, ou não pensou a respeito, mas ele fez algo que me marcou profundamente. No terceiro ano do ensino médio, na preparação para o vestibular, ele me apresentou um caderno sem linhas (esqueça marcas de produto! Nem comece a dizer “ah, molesk…”, não!). Ele juntou uma quantidade de folhas chamex (opa!) e mandou encadernar. Acredito que sem as linhas deveria ser mais fácil de escrever as fórmulas, os cálculos, os códigos binários, os… não sei tantas palavras da área, não vou me atrever. Dois anos depois, eu já estava ansiosa para fazer meu primeiro caderno sem linhas (essa é nossa diferença de idade). Juntei as folhas e mandei encadernar para as disciplinas discursivas – na época havia prova discursiva para se entrar na universidade. Eu fiz dois cadernos de história (História Geral; História do Brasil – a História do ES ainda é uma incógnita)[4] e três cadernos de Biologia (Genética e Zoologia; Botânica; Citologia e Histologia), porque eu entrei, primeiramente, no curso de psicologia (ai, quanta rima!). Por que digo tudo isso? Faz muitos anos, mas desde aquele momento, sempre que eu posso, eu fujo da linha. Minha letra não seguia reta, mas eu não me importei. Podia criar esquemas, fazer observações de observações em canto de página, pois tudo era canto, ou simplesmente nada era canto, nem margem. Nada na folha expulsava a palavra para um espaço específico. Enquadre-se! E até hoje sigo sem as linhas. Tenho alguns cadernos com linhas, que trabalho nos planejamentos de aula (estou como professora e muitas outras coisas – sim, estou e não sou),[5] mas são aqueles trabalhos que me exigem uma didática mais, digamos, reta. Mesmo que eu engula algumas linhas.
A questão é: E a poesia? Hoje Camilla me disse que tenho poesia na minha prosa. E tudo o que eu aprendi na escola não fez o menor sentido quando ela me disse isso (nem vou me atrever a discursar sobre o que penso da escola, ainda mais neste caos de livros e papeis por todos os lados).[6] Poesia em prosa. Em minha formação em Artes Visuais compreendi minimamente o que é poética, mas.. poesia em prosa.. Por que a poesia me incomoda?
Pensei em fazer um teste. Por isso esta escrita e esta fuga (sabe a teoria do caos?).[7] Sei que tenho um livro de poesia que gosto, mas não sei se pela poesia. Gosto do autor, da capa, do seu trabalho (ele também está como cantor) e da amizade. E gosto de saber que ele não se incomodará com esta minha estranha vontade de escrever sobre algo que não sei. Abramos (Abramos, Abraão) em uma página aleatória do livro: [8]
Ler. Reler. Reler… Bem, contraponto é uma palavra que gosto. Também vejo reticências, que são pontos, e há contrários, dos pontos, nesse.. contraponto. Entende? Olha que confusão mental.[9]
.
Teste 01: da poesia à prosa
Contraponto
… paz mortal, Só. Não há palavra, beijo.
… páginas fáceis de uma novela, nem essas. Ou mais difíceis, destas, imaginando contrários: Outra conversa, no som das gotas de chuva.
Reflexão: Continuamos com contrapontos, com contrastes. Mas eu ainda não consigo. Não vou usar a palavra gosto, porque escrita é escrita, e há mudanças. Mas, não me sinto ainda leitora.
.
Teste 02: das linhas
Contraponto |
… paz mortal, |
Só. |
Não há palavra, |
beijo. |
… páginas fáceis |
de uma novela, |
nem essas. |
Ou mais difíceis, |
destas, |
imaginando |
contrários: |
Outra conversa, |
no som das gotas |
de chuva. |
Reflexão: calafrios. Será que se alguém a declamasse para mim, eu ficaria mais aconchegada?
Reflexão n.2: pânico! Em uma das páginas o autor me diz que se trata de poemas e não de poesia (ah, escola…).
.
Teste 03: pormenores possessivos, tomar para si
Paro, em grande silêncio, diante de linhas que eu sei que existem, que eu sei que estão ali, a dar corpo reto para aquilo que não deveria ser reto. Um contraponto – há curvas nas margens, mas não as percebo, elas se escondem. Nem palavras, nem beijo. Se havia palavras fáceis, eu as perdi. Das palavras difíceis, daquelas que não adentram a garganta, nem conseguem sair dela, sobram apenas os contrários. Paro, novamente, em silêncio, para ouvir a conversa da qual eu faria parte. Sei que falam, mas não me atenho a essa novela, ateria, se não fossem o estrondo das gotas de chuva e das linhas.
Reflexão: Sinceras desculpas por não compreender o poema, a poesia, ou a tal frase que ainda ecoará em mim por longos tempos: há poesia em minha prosa.
.
Teste 04 e teste 4 1/2: tomar e desdobrar
Reflexão: Preciso arrumar minha biblioteca. No caos e nas linhas…
.
.
.
Observação: Uma semana depois de escrever este texto, estranho, um estranho texto, eu comprei um livro de poesia, ou ele me comprou… dizia, naquela página aleatória: [10]
.
.
[1] [12:23, 13/10/2016] Rodrigo Hipólito: Venho almoçar e derrubo o vidro de shoyo no chão antes mesmo de me sentar…u.u…
[12:26, 13/10/2016] Fabiana Pedroni: 😦
[12:26, 13/10/2016] Fabiana Pedroni: Eu estou escrevendo um texto no caos ^.^
[12:29, 13/10/2016] Rodrigo Hipólito: Texto no caos… Já tem até título rsrsrs
[2] Gosto de colocar notas nos seus textos [Rodrigo Hipólito]
[3] Prefiro ciências duras e ciências moles, ou líquidas, ou sociais. Lembro das divisões internas do trivium e do quatrivium. O trivium, dividido em lógica, gramática e retórica, nos servia para o exercício da linguagem e, com ela, do discurso. O quatrivium, dividido em aritmética, música, geometria e astronomia, apresenta uma segunda divisão. A aritmética (“dizia eu”) traz a teoria dos números e a música, a aplicação da teoria dos números. A geometria traz a teoria do espaço e a astronomia, a aplicação da teoria do espaço. Daria pra deixar de falar em ciências moles (humanas) e adotar o trivium e trocar o ciências duras (exatas) e falar em quatrivium, ou não, sei lá.
[4] Uma das minhas profundas revoltas quando era criança dizia respeito aos títulos como História Geral, História Universal ou pior, alguns volumes enciclopédicos que traziam na capa o horror Curta História do Mundo.
[5] Quando percebi que estar me é mais interessante que ser, ganhei enorme leveza e uma equivalente incompreensão dos meus interlocutores. Isso me fez ter alguma pena desses interlocutores, o que não é bom, felizmente, esse também é um estado passageiro.
[6] Nesse momento, escola me faz pensar numa relação bem ruim. Se a disciplina mata a filosofia, a escola encerra o conhecimento (encerra no sentido de acabar com ele mesmo).
[7] Pro resto da minha vida essa expressão me lembrará dinossauros.
[8] PINHEIRO, Elton. Orações com vícios de linguagem. Vitória: Secult, 2008, p. 37.
[9] Uma última nota. Não me atrevo a comentar os testes que já são um atrevimento e resta uma sensação de que um atrevimento dentro de outro misturaria tanto essa coisa textual de um modo que daria trabalho. Se for trabalhoso demais eu me irrito e perco a paciência. Nesta última nota, prefiro apenas reafirmar uma afirmação que me cansou. Tenho dificuldade com versos. Gosto de conversas e os versos sempre causaram em mim um distanciamento desagradável. Aprendi a reconhecer o valor de versos. Esse aprendizado justificou-se mais para não parecer totalmente ignorante do que por curiosidade. Me dou a liberdade de não consumir coisas que me chateiam (de entediar mesmo). Assim, não gosto de versos, mas amo quando poetas falam.
[10] DIAS, Daniela. Mais uma dose. Vila Velha: do autor, 2016, p. 21.
.
.
.
.
.
.
.
..
.
.
.
Pingback: Eu escrevi um texto sobre o seu trabalho – NOTA manuscrita