[Sobre “Como areia do mar” (DOC, 15’, ES), de Raphael Sampaio, apresentado no 23º Festival de Cinema de Vitória]
A vista, às vezes, parece mais turva que a memória. Nos esforçamos para separar elementos, ver fronteiras, fazer distinções inúteis que mais nos impressionaríamos se deixássemos as nuances livres para sussurrar pequenos contrastes.
Não parece fazer muito sentido criar listas de fatos, descrever tudo em menores detalhes se até mesmo o tato nos engana. Que tudo seria este? A memória, e a própria noção de história, dialoga com a ficção, brinca com nosso entendimento de mundo. Peça para alguém narrar sobre um fato passado, e compartilhado, para então revelar o quanto de criação (inventio) depositamos no que um dia pensamos ser um almoxarifado. A memória, muito bem trabalhada por Raphael Sampaio em “Como areia do mar”, retira do passado o peso de “fatos guardados” para mostrar o desdobramento de muitas memórias em uma. E o que seria a memória senão uma mistura, uma constante recriação de diferentes realidades?
O curta, apresentado na Mostra Foco Capixaba [23º Festival de Cinema de Vitória], explora uma interessante construção dialógica entre sons [relatos de três idosas] e imagens [fragmentos de memória]. Por essa montagem fílmica, através dos detalhes e da sobreposição, ou melhor, da justaposição de fragmentos de memórias, o curta margeia entre o documentário e a ficção. Pensar sobre memórias no presente requer fluidez e um mínimo de confusão mental para não transformá-las em objetos opacos e estanques.
Falamos, aqui, de uma transformação no plural, pois, apesar de a narrativa ganhar corpo pelos depoimentos de três senhoras, esses depoimentos se diluem uns nos outros e no sujeito que assiste o curta. Somos convidados a fazer parte da construção dessa memória. Não porque, em certa medida, já ouvimos histórias semelhantes, mas porque somos estimulados a completar as lacunas das memórias embaçadas. O documentário não parece propor-se a narrar as histórias de três senhoras, de modo fiel, mas de nos fazer conectar com suas emoções e as recriarmos a partir de nossa própria visão. A junção dos fragmentos sonoros e imagéticos depende de nossa criação, da imagem mental que elaboramos das personagens e de como cada um de nós soluciona o discurso do curta.
Em um determinado momento há também uma justaposição sonora dos depoimentos. É o auge da fronteira entre a identidade e a coletividade, entre o documentário e a ficção. Os discursos são diluídos para “histórias de todos nós”. Se, a princípio, os detalhes exibidos formam apenas um corpo, um estranhamento, a confusão depois é desfeita, não por um jogo de identificação tripartida (identidade), mas pela compreensão de que também fazemos parte dessa confusão e esquecimento.
O diálogo entre fragmentos de imagens e de relatos intercalados abre a discussão da memória para outros caminhos que queiramos tomar, de acordo com a nossa própria construção. Contudo, somos cercados involuntariamente por uma revelação que une as três histórias de vida, que nos direciona a um esquecimento já definido minimamente pela medicina e que nos atém um contexto muito específico. São pequenas amarras com corpo de legenda que, assim como muitos títulos, fecham os questionamentos sobre si. Cabe, nesse momento, discordarmos e ignorarmos alguns detalhes para continuar a construção presente de uma memória que, no acontecimento da própria imagem, deixa de ser documental para ser, simplesmente, nossa.
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