Panorama Crítico, v. #10, 2011, p. 72-77. ISSN/ISBN: 1984624X.
Comentário para uma memória
Quando publiquei esse texto, ainda durante minha graduação, guardava diversas concepções generalistas sobre os rumos da História e os recortes de épocas e locais. Acredito que seja difícil fugir de generalizações em qualquer primeira experiência de pesquisa ou na medida em que formamos nossas bases num mundo novo. Algumas dessas impressões foram corrigidas com o passar dos anos, enquanto outras se confirmaram. Hoje, talvez, eu imaginasse a metáfora sobre as relações entre modernidade e contemporaneidade na Arte de modo mais dissolvido. Isso não quer dizer que não continue a gostar do que construí nesses poucos parágrafos que seguem.
Ao reler o que escrevi quase sete anos atrás, ainda consigo identificar as motivações e o ímpeto desse discurso. “Tempo Contemporâneo” foi, em grande parte, uma reação a postura de colegas de graduação, veteranos e professores e, por outro lado, fruto de um desejo de realizar e entrar em contato com trabalhos menos preocupados em agradar as Instituições. Havia um desejo de construir um processo que não refletisse de modo repetitivo o debate sobre o rompimento ou não-rompimento com a modernidade. Numa parte excluída da versão final, cabia, ainda, a dúvida sobre a validade de todo um cobertor teórico originado em outras terras e de outras tradições. Essa dúvida, pouco depois, iria se tornar um dos meus focos de pesquisa.
Antes do texto, me parece relevante ressaltar que todos os exemplos usados são descrições quase diretas de situações realmente presenciadas na semana em que esse texto foi escrito.
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Em “Tempo de crise, Crise do tempo”, Paulo Venâncio nos fala de uma “nova temporalidade”, a nossa, por sinal. Essa temporalidade na qual “o micro substitui e desqualifica o macro”, na qual o fluxo não permite (ou quase) o contato, a apreensão dos dados, traz uma preocupante afirmação desacreditada da contemporaneidade.
Como já aponta Márcio Doctors, em “Dissonâncias e novas utopias”, “Por que necessitamos afirmar para nós mesmos que aquilo que fazemos nos é contemporâneo?”
Esse distanciamento, criado pela terminologia histórica, é o que nos permite aceitar e ao mesmo tempo nos impede de negar essa temporalidade inconclusa, que trabalha para fugir da definição. Talvez esta terminologia nos coloque numa posição de contemplação dos nossos calcanhares. Contemplação sim, mas sem o mais sutil empenho para agarrarmos os passos ininterruptos. Ou vive-se a caminhada ou pinta-se a caminhada.
Pintar a caminhada é, certamente, mais gratificante, pois é necessária a identificação de um sensível/reconhecível para a construção de outro. Tanto durante o processo de identificação dos passos seguidos a curta distância (não pode ser tão simples manter-se alheio ao seu tempo, ou com verdadeiro distanciamento) quanto na construção de um novo sensível/reconhecível, com base na caminhada observada, há um acompanhamento, por parte do ambiente, que segue nesse distanciamento proporcionado pela terminologia.
Pois, O que vive o distanciamento do seu tempo não é um observador no singular. Trata-se de uma justificativa para a existência desse observador. Essa justificativa é o Olhar que aponta para os calcanhares com o dizer “aquele é o tempo contemporâneo”. E essa justificativa é também o observador, em quem reside o fazer que permite a construção do novo sensível/reconhecível. Certamente, o que é visto integra-se (em parte) visceralmente no que é feito e no que faz. Porém, nesse caso, não haverá completude da prática.
Quando transformamos nossa contemporaneidade numa categoria histórica, impossibilitamos a formalização da vivência. O fazer desse tempo é a “desterritorialização” e uma horizontalidade sem foco. A tentativa de abarcar essa temporalidade, ao nomear uma Arte Contemporânea, acaba por direcionar a liberdade para os limites conhecidos do “caso inacabado” com a modernidade. Compreensível. Ainda não se fecharam as feridas causadas pelas falsas promessas greenberguianas e pelas tantas traições do olhar. Ímpetos suicidas vêm agarrados à angustia por produzir. Ainda pisamos o chão e nos escondemos atrás das paredes. Embora saibamos que as janelas que haviam se rompido deixaram portas simpáticas em todas as direções.
Não é ignorância dos fatos. Há consciência por trás das convenções.
Certamente essa é uma generalização, pois, é possível acreditar que apenas o grande monte da produção de arte na atualidade finge não reconhecer seu presente. Quando ocorre um assassinato na principal avenida de uma periferia esquecida na urbanidade, esteja certo, ninguém estava presente. Nesse caso, nada foi visto, a consciência é negada em palavras, embora todos, inclusive quem pergunta, saibam que o fato é de conhecimento geral. A negação, em seu compromisso com a verdade, é descaradamente falsa, torna-se nulidade. Esse é o comportamento dos artistas que ainda choram a modernidade.
Ouvir de um grupo de artistas ditos “contemporâneos” uma explicação de todo o seu esforço teórico e prático para compor obras reunidas numa exposição coletiva pode ser assustador. Ao afirmarem que a base da construção das máximas de sua exposição teria sido a constante leitura e análise em grupo de “Arte Moderna”, de Argan, o grupo deixa pensamentos posteriores numa inacessibilidade constrangedora. E ao adentrar a galeria e sentir os ponteiros do relógio noutro sentido e os passos falharem no desconforto de um ser pisando outra época (num fazer dos anos 40), tudo torna-se assustador, mas nem tanto.
Não que Argan seja (agora) inútil, certamente serviria para compor nosso panorama não linear dos caminhos poéticos do século XX. O incômodo está em dispor de “Arte Moderna” para a compreensão de um tempo desnorteado, ao qual os binóculos da modernidade, representados aqui na figura desse italiano, jamais poderiam ter atingido. Dizer avanço seria autocondenação e dizer retrocesso, ou estagnação, seria benevolência.
Para evitar o choro indecoroso desses neo-modernos, coloquemos a atualidade e a modernidade como dois vilarejos distantes (para que tentemos fugir de uma linearidade histórica), em contato um com o outro apenas por meio dos possuidores de binóculos. Podem mesmo enxergar o outro, mas não realmente toca-lo. O vilarejo moderno enxerga a atualidade, dá um sorriso de desfeita, balança negativamente a cabeça e volta a desfazer e refazer suas casas. O vilarejo da atualidade, quando olha para o outro, acha tudo muito bonito, inocente e irritante. Essas características já são suficientes para o vilarejo da atualidade ter grandes problemas.
Enquanto, no vilarejo da modernidade, a maioria dos habitantes nem mesmo está interessada em usar binóculos, do outro lado, praticamente todos os habitantes passam o dia olhando pelas lentes e as noites tendo sonhos orgásticos. Uns perdem o interesse no mundo, outros perdem o interesse em si. Ao fim, quase sempre, não há anacronismo. O problema está quando o posicionamento do vilarejo da atualidade atinge o raio das práticas de sua época. Esses tantos dotados de binóculos acreditam que os modernos se aproximam poeticamente da inocência (com as raras exceções daqueles que mandam cartas e dos próprios carteiros) e riem-se ironicamente deles enquanto não param de fotografar suas rotinas e construir outdoors com essas fotos. Os habitantes da atualida iconizam tudo o que menosprezam. Logo, as ruas do vilarejo da atualidade encontram-se atulhadas de material turístico do vilarejo da modernidade, que jamais será visitado.
É quase impossível desviar a atenção desses portadores de binóculos no vilarejo da atualidade. Recentemente, durante o processo de montagem de uma exposição com tema delicado, viu-se um fato exemplar. Um artista iniciante, na posição de convidado a expor nessa mostra alternativa, dispensou contato próximo com as curadoras e o processo de montagem, deixando para o derradeiro momento a entrega de sua obra. Quando postas as cartas na mesa, a obra proposta pelo artista iniciante não se mostrava condizente com as condições básicas do espaço expositivo. Diante do pedido para que a obra pudesse ser apresentada com alguma adaptação, o artista iniciante mostrou-se acorrentado ao termo da negação.
O que o artista chamava por obra era, na prática, um produto poético de um fazer repetitivo do estudo de materiais (pedaços de madeira, tinta, pregos) numa boa imagem da estética “primitiva” adotada pelos modernistas do começo do século XX. Algum problema com essa espécie de produção? Aparentemente, não. Porém, diante da possibilidade de adaptação de uma obra que não respiraria sozinha (estaria tão amarrada ao processo pessoal de criação quanto o indivíduo ao seu binóculo) aparece a negativa. E sem uma palavra de justificativa provinda do artista – além da composição de cores, de extrema importância a seu Ver, mas, que nem o próprio demonstra saber qual seria, já que, num momento, quer a “parede branca”, noutro quer “refazer a parede”, noutro “não quero parede”, noutro quer “a impressão do movimento”, noutro quer “que o público movimente a obra” – essa negativa é a Ignorância.
Pressionado, o artista desiste de dialogar com um universo que não é o seu e mostra enfim sua inocência: “já que não posso expor minha obra como quero, então mando qualquer uma”. Apanha, então, um dos muitos amontoados de madeira pintada como caricaturas coloridas das “curiosidades de Picasso” e manda para a galeria. Desse modo, ele admite ser um artista de uma obra só. Ainda mais, admite não possuir respeito por sua obra ou por seu fazer e nem mesmo acredita nessa Arte. Não pensa a vida, o universo e tudo o mais.
Essa única obra, cria relações quando insiste no seu único foco? é o artista que se fecha sobre si. E os pêsames vão para aqueles que perderam a oportunidade de entrar em contato com Arte. Ao depararem-se com aquele amontoado de madeira sem vida, viraram o rosto, sem atentar para as demais obras. É quase impossível desviar a atenção desses portadores de binóculos no vilarejo da atualidade. Os que tentam, na maioria das vezes, atingem o constrangimento.
Observa-se o pensamento de um desses artistas de uma só obra no diálogo ocorrido em certa acareação entre interessados de uma mostra independente:
Curadora – Bom, como o espaço não impôs restrições nesse sentido, não creio que exista problemas em as obras serem comercializadas.
Binocular – Eu discordo. Porque isso faz a obra perder seu significado. Eu não estava a fazer essa obra para ser vendida.
Curadora – Então, nesse caso, você não está na obrigatoriedade de por sua obra a venda.
Binocular – Mas, isso desvaloriza a exposição e com obras de outros artistas a venda a minha obra perderá o significado junto com as obras deles.
Curadora – Bom, não creio que o fato de uma obra ser comercializada retire sua importância ou seu conceito ou seu significado. Caso você tenha construído a obra dentro de uma proposta em que a sua não comercialização seja fundamental para que Ela se sustente, que assim seja. Embora, inicialmente, isso não impeça os demais expositores de porem suas produções a disposição de possíveis compradores.
Binocular – Mas, nesse caso, eu sugiro que seja aberto junto a exposição, um bazar para que os expositores possam vender a produção que já está em seu atelier ou que já tenha produzido para outros fins.
Aparentemente, não surge, no horizonte dos binoculares, a possibilidade de que suas obras sejam mais que um alter ego literário. Este seria um pensamento complacente, pois, de imediato, poderíamos pensar que se trata de oportunismo fútil: descobrir uma fórmula atrativa, valorável ao ser tomada como Arte, e repeti-la numa eterna masturbação frígida.
Fora do campo concernente a Arte, tais práticas dos binoculares poderiam aparecer como potentes geradores de questionamentos sobre as rotinas do vilarejo da atualidade. Na insistência em dispor esses fazeres num panorama que os deixa com o rosto de uma criança esquisita e insatisfeita na sala de aula errada, o pouco que se pode dizer, Baudelaire já havia dito antes mesmo que esses binoculares pudessem existir. Nesse tipo de citação, certamente há a esperança de que alguns venham a perceber que o anacronismo quase sempre é um engano. Um dos grandes problemas que podem ser apontados está em uma comunidade pautar sua produção poética pela observação de outra comunidade, a qual sempre se encontra voltada sobre si.
Em semelhante matéria, seria fácil e mesmo legítimo raciocinar a priori. A correlação perpétua do que chamamos alma com o que chamamos corpo explica perfeitamente como tudo o que é material ou emanação do espiritual representa e representará sempre o espiritual de onde provém. Se um pintor paciente e minucioso, mas dotado de uma imaginação medíocre, em vez de pintar uma cortesã do tempo presente, inspira-se (é a expressão consagrada) em uma cortesã de Ticiano ou de Rafael, é muito provável que fará uma obra falsa, ambígua e obscura. (Baudelaire, 1996, p. 25)
Uma visão aparentemente pessimista, porém, o alvo não são os ditos binoculares e sim o fato de que não os tenhamos ainda abarcado na etiqueta de “contemporâneo”. Podemos direcionar o olhar para uma geração que teima em se afirmar pela ação de se afirmar e enxergar o tempo do artista proponente, do artista especialista em arte.
Referências
Baudelaire, Charles. Sobre a modernidade o pintor da vida moderna (organizador Teixeira Coelho). — Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.
Doctors, Márcio. Dissonâncias e novas utopias, In: Barbosa, Ronaldo; Pessoa, Fernando (organizadores). Do fundo abismo nascem as altas montanhas ou: de como superar uma crise: seminários Internacionais Museu Vale 2010, Vila Velha, Es: Museu Vale; Rio De janeiro: Suzy Muniz Produções, 2010, p. 181-187.
Filho, Paulo Venâncio. Tempo de Crise, Crise do Tempo, In: Idem, p. 149-163.
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