Artigo apresentado no VII Colóquio de Arte e Pesquisa (Colartes – UFES, 2019) e publicado em Anais.
Referência completa:
PEDRONI, Fabiana; HIPÓLITO, Rodrigo. Nota Manuscrita: Processo Criativo como Processo de Pesquisa. In: VII Colóquio de Arte e Pesquisa dos Alunos do Programa de Pós Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo: Há um lugar para a Arte?, 2019, Vitória, ES. Anais do VII Colóquio de Arte e Pesquisa dos Alunos do Programa de Pós Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo: Há um lugar para a Arte?. Vitória, ES: Proex-UFES, 2019. v. 1. p. 313-323.
Nota Manuscrita: Processo Criativo como Processo de Pesquisa
Nota Manuscrita: Creative Process as Research Process
Fabiana Pedroni / UNESP
Rodrigo Hipólito / UFES / FAEV
Resumo: Este texto analisa os métodos de trabalho presentes no projeto NOTAmanuscrita, ativo desde 2012. Através dos documentos presentes no site notamanuscrita.com, disponibilizados nos últimos sete anos, discutimos conceitos operatórios em processos poéticos. Trabalhamos com uma análise entre Teoria da Arte e Crítica Genética, para ressaltar as trilhas que partem da gênese do processo criativo e seguem ao encontro de formas de expressão, comunicação e aportes teóricos. Sublinhar tais caminhos nos permite compreender os enlaces entre uma variedade de etapas do processo de criação como Metodologia de Pesquisa em Arte. Ao fim, nossas conclusões se voltam para a compreensão da estrutura teórica, prática e experimental de tais realizações, como uma contribuição para as Metodologias de Pesquisa em Arte.
Palavras-chave: Processo Criativo; Metodologias de Pesquisa; Experimentação; Crítica Genética.
Abstract: This text analyzes the working methods presents in the NOTAmanuscrita project, active since 2012. Through the documents presents in the site notamanuscrita.com, available in the last seven years, we discuss operative concepts in poetic processes. We work with an analysis between Art Theory and Genetic Criticism, to highlight the trails that start from the genesis of the creative process and follow the meeting of expression forms, communication and theoretical contributions. Underlining such paths allows us to understand the links between a variety of steps in the creative process such as Art Research Methodology. In the end, our conclusions turn to the understanding of the theoretical, practical and experimental structure of such achievements as a contribution to Art Research Methodologies.
Keywords: Creative process; Research Methodologies; Experimentation; Genetic Criticism.
Introdução. Caminhos da experiência
“A que horas eu acordo?” Eu acordo com este pensamento e, em seguida, durmo. “A que horas eu acordo?” A mesma frase volta e me desperta. Assim sigo, repetidas vezes, até anotar a voz num bloquinho. Palavras cheias de erros ortográficos, um tanto ilegíveis, resultado de mão trêmula e de apenas um olho alerta e outro já a dormir. A anotação continua em sono tranquilo, mas, sem lembrança.
Seria mentira se nós disséssemos que esse é o modo ideal de se trabalhar um texto, com interrupções do sono, mas, foi o modo mais sincero que encontramos para iniciar uma fala sobre processo criativo e Metodologias de Pesquisa em Arte. Muito do que aqui trabalharemos percorrerá demandas de uma escrita que brinca com o cotidiano e com o ficcional, direcionada à pesquisa como objetivo maior.
“Eu comecei a compreender a construção deste texto não pelas referências que aqui serão apresentadas, mas pelo cafuné na cabeça do cachorro que vive aqui em casa.”[1] Esta seria outra boa frase de abertura para o texto. O que esses dois inícios têm em comum? Ambos aproximam a experiência quotidiana com a atenção teórica da experiência e mostram que há vários gatilhos possíveis que apontam para diversos caminhos a se percorrer até a compreensão de conceitos.
Os trajetos os quais analisaremos estão expostos no projeto NOTAmanuscrita. Desde 2012, o projeto, sediado em notamanuscrita.com, reúne variadas linguagens e arquivos: anotações, contos, crônicas, textos críticos, ilustrações, rascunhos, fotografias, vídeos, montagens, vídeo-performances, datilografados, artigos acadêmicos, podcasts, livros de artista, poemas, objetos, registros de intervenções públicas (e rurais) e instalações dos artistas e pesquisadores envolvidos. Construído inicialmente pelos autores deste texto, o projeto conta, hoje, com a colaboração de Alana de Oliveira, André Martins (ambos participantes do podcast Não Pod Tocar) e Maria Angélica Pedroni. Essa grande variação de linguagens responde à diversidade de meios de se relacionar com o mundo e traçar caminhos poéticos para a Pesquisa em Arte.
Mas, afinal, o que é Pesquisa em Arte? Em sentido amplo, são as investigações realizadas no campo das Artes; “É uma forma de abordar artistas, seus processos e os seus produtos” (FORTIN; GOSSELIN, 2014, p. 01). Podemos incluir, nesse bojo, Pesquisa Sobre as Artes (sobre determinado ponto artístico, linguagem, artista, obra, etc.), Pesquisa Para as Artes (o estudo de linguagens que possam contribuir para o alargamento do fazer e do pensar artísticos) e Pesquisa em Artes (compreensão de um conhecimento incorporado pelo artista, ou seja, teoria e prática dialogam ao longo do processo criativo e na produção poética). Longe de tentar encontrar uma definição engessada, essa breve explanação evidencia que a investigação é um ponto de partida e, junto dela, apontamos para a relevância da experiência.
A experiência é uma ferramenta para se adentrar e examinar o mundo. Esse exame não deve ser compreendido como uma observação distante de objetos da natureza, mas um modo de aproximação. Estamos numa linha de pensamento avessa àquela concebida pelo Positivismo. Isso modifica nossos objetivos, pois não nos interessa explicar o mundo, tampouco erigir um conhecimento imparcial sobre os objetos examinados. Aproximar-se é ver, sentir, tatear com o corpo, é comunicar-se. Aproximar-se de um objeto de estudo é tornar-se íntimo dele, ao ponto de que seja possível extrair dele conteúdos que somente poderiam existir a partir de tal intimidade.
Jorge Larrosa (2011) nos fala dos princípios da experiência: os princípios de alteridade, exterioridade e alienação; princípios de reflexividade, subjetividade, transformação e tantos outros que definem e alimentam a ideia de experiência.
Poderíamos dizer, portanto, que a experiência é um movimento de ida e volta. Um movimento de ida. porque a experiência supõe um movimento de exteriorização, de saída de mim mesmo, de saída para fora, um movimento que vai ao encontro com isso que passa, ao encontro do acontecimento. E um movimento de volta, porque a experiência supõe que o acontecimento afeta a mim, que produz efeitos em mim, no que eu sou, no que eu penso, no que eu sinto, no que eu sei, no que eu quero, etc. Poderíamos dizer que o sujeito da experiência se exterioriza em relação ao acontecimento, que se altera, que se aliena (LARROSA, 2011, p. 6-7).
A experiência em Larrosa apresenta o ex de exterior e o per de travessia. Trata-se de um “sair”, o ex que aproxima a experiência da noção de experimentação. A própria palavra experiência origina-se do verbo latino periri, que significa “experimentar”, mas, ao mesmo tempo, guarda, em sua etimologia, a noção de “arriscar-se”. Se John Cage (1961, p. 39) afirma que “[…] uma ação experimental é aquela cujo resultado não está previsto”, Hélio Oiticica nos chama a “experimentar o experimental” (1972):
o exercício experimental da liberdade evocado por MARIO PEDROSA não consiste na ‘criação de obras’, mas na iniciativa de assumir o experimental […] o experimental não tem fronteiras para si mesmo é a metacrítica da ‘produção de obras’ dos artistas de produção.[2]
Oiticica, ainda no mesmo texto, ao citar John Cage e o uso do termo experimental, afirma que o experimento é etapa, é caminho não-convencional. Da noção de travessia, pertencente à experiência, Larrosa (2011, p. 08) nos indica um princípio de paixão, que é o “[…] movimento mesmo da experiência”. A experiência que nos afeta e se direciona ao afeto do outro.
O ato de comunicação parte, no projeto NOTAmanuscrita, da experiência particular com o mundo, para atingir o Outro. Neste ato de atingir, a gênese do processo criativo trilha os caminhos ao encontro de formas de expressão, comunicação e aportes teóricos. Sublinhar tais caminhos nos permite compreender os enlaces entre uma variedade de etapas do processo de criação como Metodologia de Pesquisa em Arte.
Conceitos operatórios para ter intimidade com fenômenos corriqueiros
Através dos documentos presentes no site notamanuscrita.com, disponibilizados nos últimos sete anos, é possível discutir conceitos operatórios em processos poéticos. Ao redor de cada trabalho, orbitam diferentes conceitos que os põem em ação. Sem a necessidade de nos determos detalhadamente sobre as descrições formais de todos os projetos, nos dedicamos às suas amarrações conceituais e aos elementos dos processos criativos que se mostraram mais comuns.
Para retornarmos a presença de Hélio Oiticica neste texto, podemos pensar nas ideias de Crebehaviour, Crelazer e Suprasensorial. Tais conceitos aprofundam a relação Arte e Vida quotidiana. Com a noção de Suprasensorial, Oiticica visa o potencial criativo interior do sujeito/espectador/participador, que seria revelado a partir de uma atividade de lazer/prazer, isto é, de desinteresse e espontaneidade. É no âmbito do lazer/prazer que se concebe o conceito de Crelazer: lazer não-repressivo. Já na ideia de Crebehaviour (“crecomportamento”), Oiticica afirma que não se trata de criar um objeto, nem mesmo de transformar atos da vida em atos criativos, mas da necessidade de se incitar atos de vida que brotem como necessidades, a partir de uma situação de conflito (PEDRONI, 2012): o conflito com a própria vida, o conflito que é o lazer. Na cota lazer/prazer, encontramos o conceito de crelazer. O lazer é o inverso do trabalho (de Arte), é “[…] mudar do ‘trabalho de arte’ para o ‘lazer inventivo na arte’” (BRAGA, 2007, p. 113).
Estes conceitos são desdobrados em ações como “Faça, Reduza e Empilhe Barquinhos”, inserida no projeto ‘Engenharia Naval em Papel”.
Depare-se com uma atitude despretensiosa. Aceite, observe e conduza sua atenção até chegar ao sentido, pois esse nunca é dado. A Lógica do Corriqueiro é o caminho de sua grandeza. Faça, reduza e empilhe barquinhos. Ou dê nós no tecido achado, até o tecido se perder, desaparecido. Ainda, apanhe papéis e faça bolinhas. Arranje algumas pedras e deixe um desenho na areia. Transforme a banalidade em presente e construa significado. Veja o novo e instigante, o bobo, o potente e o sem base, sem fundo. Saia da base da montanha e suba ao cume. Depois retorne a base para poder olhar. [11.2011] [3]
Essa ação consistia no ato descrito pelo título, na concentração envolvida nesse ato artesanal e sem utilidade e na sensação simplória de ter realizado algo voltado para satisfazer um universo de vontades particulares (como caminhar sem pisar nas brechas da calçada, organizar moedas por ordem de tamanho e tantos outros microdesafios íntimos). Um modelo ilustrado de como realizar a ação foi impresso e espalhado por livros de uma biblioteca pública para serem encontrados ao acaso.
Mas, aqueles barquinhos de papel seriam tão desprovidos de função assim? Esses microdesafios do quotidiano não detém significado? Caso eliminássemos de nossas vidas pequenas vontades e a sensação de ter realizado algo inútil, todas as nossas outras ações continuariam a ter o mesmo valor? Para pensar as funções daquilo que parece mais desprezível, devemos recorrer a outro conceito, o qual, para nós, também se tornou operatório.
O conceito de imagem-objeto, inicialmente utilizado por Jérôme Baschet (1996), nos põe a frente de elementos que muitas vezes são excluídos da compreensão de uma imagem. Pensar a imagem-objeto não é coisificar a imagem, dar a ela o caráter de objeto, mas de encarar sua materialidade como parte constitutiva, assim como seus usos e funções. Quer dizer, mesmo que a imagem não possua corpo, ela faz parte de um contexto histórico-social e tudo que orbita seus usos e entendimentos são essenciais. Isso significa que elementos antes ignorados pelos historiadores e teóricos de um modo geral, passam a ser considerados. É nesse sentido que abrimos a compreensão do ornamento e da ornamentalidade como parte da imagem e parte do mundo. O sentido de ornamentalidade, por sua vez, foi cunhado pelo medievalista francês Jean-Claude Bonne (1997) e, no nosso caso, operou tanto para nos auxiliar a pensar a imagem medieval quanto as ações do quotidiano. O ornamental configura-se como um “poder”, aquilo que a ornamentação pode fazer, a depender do contexto em que se insere.[4] A ornamentalidade é orquestradora de nosso relacionamento com o mundo, ela nos marca e direciona nossa experiência. Esta noção opera em trabalhos como “Ventiladores-cata-ventos” (2013).
Às margens de uma rodovia entre os municípios de Domingos Martins e Afonso Cláudio foi instalada um pequeno “bosque de cata-ventos” (Figura 1). Esses cata-ventos foram feitos com hélices de ventiladores elétricos e finos troncos de eucalipto. Afixados em meio a flores silvestres, no inverno, os cata-ventos amanheciam com a neblina e giravam em conjunto para o olhar transversal dos motoristas.

Figura 1. COLETIVOmonográfico. Ventiladores-Cataventos: Homenagem ao Ornamento Degenerado. Sítio Força Verde, 2013.
Formado por um cano de pvc e hélice de ventilador, o item fotografado é questionado: De que serve um catavento escondido num prédio velho? Dificilmente foi feito com o prédio [construção pomposa e muito anterior aos restos de utensílio usados na composição do objeto]. Para quem essa coisa mostra que o vento existe? Poderia ser anexado à construção para conferir valor. Mas que espécie de enfeite é esse, que não se coloca para ser visto?
O olhar chegou até esse pequeno item da realidade. Sob as incontáveis veladuras e colagens do cenário urbano, um foco de luz incide sobre a coisa e através deste pormenor, é proposta uma construção. Trata-se de um desdobramento. Um fazer algo por aquilo que já está feito, dando-lhe novo status e sentido. Tenta-se duplicar o modo de aparição de um objeto para reestruturá-lo de um jeito demonstrável daquele ambiente íntimo que antes não o seria (PEDRONI, 2013).
Como chegamos a um item perdido em meio ao mundo funcional, mas passível de ser desdobrado em experiência estética através da sua ornamentalidade, isto é, das suas funções de conferir valor ao mundo quotidiano? Dois eixos são fundamentais para compreender a dinâmica desse processo de desdobramento. O primeiro foi comentado acima: o contato com os escritos de Hélio Oiticica, o qual nos rendeu a compreensão prática da não dissociação entre pensar e sentir.[5] O segundo eixo envolve dois artistas argentinos, Alberto Greco e Edgardo Antonio Vigo.
A partir do “Manifesto vivo dito”, de 1962, nós pensamos o conjunto de ações intitulado “RE-vivo dito”, no qual reativamos as estratégias poéticas de Alberto Greco, autor do manifesto (HIPÓLITO; PEDRONI, 2014). Na primeira metade da década de 1960, Greco circulava pedestres e objetos com riscos de giz e firmava tais elementos como “trabalhos de arte de Alberto Greco”. Do giz, Greco passa para placas com sua assinatura e com os dizeres “obra de arte de Alberto Greco”, com as quais demarca paisagens e cenários. Em “RE-vivo dito”, nós retomamos a assinatura do artista e continuamos a demarcar itens da realidade com o seu nome. O ato de demarcar espelha o sentido de señalamiento, trabalhado por Edgardo Vigo a partir de 1968.
Com o objetivo de “revulsionar”, isto é, causar estranhamento no olhar do dia-a-dia, Vigo propõe que observemos elementos funcionais da realidade para além de suas funções. Numa expansão da operação duchampiana, Vigo não se contenta em deslocar os objetos para o interior de instituições de Arte e assim destituí-los de suas funções corriqueiras. O artista posiciona-se a favor da radicalização da aproximação entre Arte e Vida e afirma que a experiência mental do público como participar ativo é capaz de fazer surgir um trabalho de arte da observação do quotidiano. Para isso, bastaria o exercício do señalamiento, do olhar direcionado para um elemento, com o objetivo de percebê-lo deslocado de sua funcionalidade (GAMANOL, 2010, pp. 214-215). A eleição de tais elementos, por sua vez, deveria se dar através do exercício de outra operação, herdada, de certo modo, dos Situacionistas franceses. Trata-se da prática da “Deriva”, mas, diverso da abrangência da deriva situacionista, que almejava sobrepujar as regras de urbanização, nesse caso, falamos na “deriva estética”. O princípio de “deriva estética” está no cerne da própria defesa do “revulsivo” (Cf. DAVIS, 2009) e se relaciona com o “exercício experimental da liberdade”, comentado no início deste texto. É possível observar a realidade a partir das funções práticas dos elementos que a compõem, ou observá-la com proximidade e intimidade, com uma atenção que lhe permita, como observador ativo, considerar cada objeto e situação como um fenômeno do qual você faz parte.
Começou a chover.
Uma chuva fina, daquelas que molham de verdade. Pela janela, é possível ver os canos de PVC instalados no telhado do prédio vizinho para escoar a água da chuva. Os fios de água dançam em variações do vento, alguns mais densos, outros mais pingados. Ninguém mais os observa nesse momento. São dois, três, quatro canos que se projetam mais de trinta centímetros para fora do concreto. Há quantos anos a água os atravessa? Talvez décadas. O limo formado em seus interiores faz com que cada fio de água tenha um formato único e isso cria um ínfimo balé de transparências e reflexos. Levanto e abro a janela. O balé produz sons. Cada impacto da água no chão, quatro andares abaixo, ressoa mais oco ou mais metálico. Somente eu observo essa orquestra do gotejar, pois eu me aproximei para examiná-la. Quando eu percebi que esse fenômeno não é apenas o cumprimento de uma função, nós nos tornamos mais íntimos.
Nota-se que boa parte das exigências continuas em operações como a “deriva estética” e o Crelazer envolvem o exercício de um olhar atencioso para si mesmo. Em certa medida, lidamos com autorreflexão, mas não o “ensimesmamento” do sujeito moderno e sim como a aceitação do reflexo mais próximo que possuímos dos fenômenos, dos acontecimentos reais.
Toda descrição é, de fato, uma interpretação no sentido de que é a seleção de informações e atribuição de significações a partir de uma memória e de um imaginário individual e coletivo. A crise da representação, longe de ver a descrição como um simples exercício de transcrição e de adequação entre as palavras e a realidade, impõe firmemente a presença e a subjetividade do pesquisador até fazer deste o objeto central nos estudos auto-etnográficos. De fato, se a pessoa que conduz a investigação é indissociável da produção de pesquisa, por que, então, não observar o observador? Por que não olhar a si mesmo e escrever a partir de sua própria experiência? (FORTIN; MELLO, 2009, p. 82).
Falamos, assim, de autoetnografia. Como metodologia, a autoetnografia provém da antropologia e o termo foi usado pela primeira vez por David M. Hayano (1979). Distante de uma concepção tradicional de pesquisa etnográfica, pela qual seria possível manter certo afastamento de uma comunidade ou fenômeno estudado, de modo a descrever o mais fielmente possível os acontecimentos e as formas, a autoetnografia defende mais do que a aproximação, mas o ponto de partida de quem está dentro do fenômeno. Assim, seria a metodolgia mais adequada para o desenvolvimento de pesquisas nas quais não apenas é impossível realizar um afastamento, pois o pesquisador está no centro do fenômeno pesquisa e dele parte, mas também por que tal afastamento seria prejudicial.
Como método, a autoetnografia se efetiva através de cinco eixos de trabalho. O olhar para si, que é a consideração de que o pesquisador não poderia, ainda que assim desejasse, excluir-se do ambiente que o rodeia, de modo que deve aceitar-se como agente dos fenômenos estudados. O forte teor reflexivo, que é a constante consideração das relações entre os agentes do fenômeno estudado, com a pontuação de que tal reflexão é exercida pelo observador. O trabalho engajado, que é o posicionamento inevitável do pesquisador como agente envolvido num fenômeno para o qual dispensa desejos e que será influenciado pela realização ou não de tais desejos. A explicitação da vulnerabilidade, pois a narrativa pessoal, o teor emotivo, os desejos, vontades e frustrações do pesquisador passam a ser dados de trabalho, logo, não devem ser encobertos da percepção do leitor/espectador. E a rejeição de conclusões, pois o encerramento das possibilidades de análise do fenômeno seria impraticável e não é objetivado quando se processa uma análise antipositivista, mais construtiva e estrutural (Cf. JONES; ADAMS; ELLIS, 2016).
Considerações Finais
Se falamos em autoetnografia, não haveria, aqui, “conclusões”. Outros conceitos operatórios e muitos outros trabalhos, que compõem a rede de produções do projeto NOTAmanuscrita, não figuraram neste texto. Cada um desses trabalhos é, de certo modo, um estudo autoetnográfico, mas, além de uma descrição reflexiva de fenômenos dos quais somos agentes ativos, também são desdobramentos de tais descrições. Se pudermos sintetizar o processo aqui comentado, diremos que tanto nossas produções teóricas como as produções poéticas ocorrem por uma autoetnografia, fundada no exercício da “deriva estética”, a partir da qual desdobramos práticas de Crelazer e señalamientos de elementos que conferem valor a vida quotidiana através da sua ornamentalidade.
A reflexão aqui construída nos permitiu observar como conceitos operatórios compõem as construções poéticas e teóricas por relações simbióticas entre teoria e prática, nas mesclas de referências a artistas/pesquisadores, teóricos, historiadores e críticos de arte.
Notas:
[1] Algumas das frases marcadas entre aspas e sem referências, contidas neste artigo, provêm de conversas ocorridas num aplicativo de mensagens. De certo modo, isso já reflete e exemplifica parte do processo criativo aqui discutido. Construir um artigo com duas cabeças, atualmente, é uma ação que exige o rompimento com certas tradições da pesquisa acadêmica, pois as notas de fichas de pesquisa, os diálogos e a edição do texto ocorrem de modo mais acelerado e atravessam o nosso quotidiano de maneiras muito mais profundas e constantes do que há duas ou três décadas.
[2] Mantém-se, nessa citação, as indicações visuais presentes no arquivo datilografado por Hélio Oiticica, sublinhado e letras maiúsculas.
[3] “Faça, Reduza e Empilhe Barquinhos”, inserida no conjunto de ações “Engenharia Naval em Papel”, fez parte do projeto mais extenso e instalações, ações e intervenções urbanas e rurais “Ínfimos Corriqueiros – Pormenores Possessivos”. As ligações internas de “Faça, Reduza e Empilhe Barquinhos” estão disponíveis em: <https://notamanuscrita.com/2012/12/20/engenharia-naval-em-papel/>.
[4] Sobre esta questão cf., dentre outros PEDRONI, 2016.
[5] Não podemos nos furtar a apontar para a contribuição das leituras e discussões em torno da concepção de sujeito fenomenológico de Merleau-Ponty, a qual acompanha também a formação das ideias de Oiticica. No nosso caso, embora não haja espaço, neste texto, para discutir todos os conceitos que mais nos tocaram, deve ser ressaltado o valor de um ponto pouco discutido do pensamento merleaupontiano, o sentido de “carne do mundo”. “A ideia de carne transparece a porosidade das fronteiras entre o corpo sujeito e o corpo objeto. Para Merleau-Ponty em O visível e o invisível (2007) o corpo como carne do mundo não é matéria, mas por uma dada consciência perceptiva sentimos que nosso corpo e o corpo dos objetos fazem parte de uma mesma carne. Entre meus dedos e a superfície da mesa que toco existe um tocar que dá corporeidade a ambos. Nessa possibilidade de estabelecimento da corporeidade encontramos a carne do mundo. Perceber/pensar, isto é, existir, é corporizar e significar. O corpo cria movimentos e ao mover-se cria sentidos, desequilibra, inverte. São noções pontuadas pela fenomenologia e que aparecem nas definições de Oiticica, principalmente quanto à função da dança e do corpo no significar a obra” (PEDRONI, 2012, Nota 13). Cf. também OITICICA, 1986, pp. 72-76.
Referências
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Fabiana Pedroni
Doutoranda em Artes na UNESP, desenvolve pesquisa na área de Arte Educação e participa do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imagem, História e Memória, Mediação, Arte e Educação (GPIHMAE – UNESP); Formada em Artes Visuais na UFES; Editora da Revista do Colóquio; Redatora do site notamanuscrita.com; Integrante do podcast Não Pod Tocar. Contato: nuvemtrincada@gmail.com.
Rodrigo Hipólito
Mestre em Teoria, História e Crítica de Arte pelo PPGA-UFES; Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (UFES) e dos cursos de Psicologia e Pedagogia da Faculdade Europeia de Vitória (FAEV); Editor da Revista do Colóquio; Redator do site Nota Manuscrita (notamanuscrita.com); Integrante do podcast Não Pod Tocar. Contato: objetoquadrado@gmail.com
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