
“Nan um mês depois de ser agredida”, Nan Godin, 1984.
Este texto é a transcrição do Não Pod Chorar 14
Texto de Fabiana Pedroni
Nos encontramos na rua de cima. Estávamos um pouco atrasados. Sabe quando se está no limite do atraso, em que você sabe que pode chegar atrasado, mas, prefere arriscar e ir com calma, por que a noite está bonita? O vento estava fresco, as ruas calmas. Pra quem mora em lugares muito quentes e pegajosos, de alta umidade, noites frescas devem ser bem aproveitadas. André e eu andamos tão calmamente pela rua, que resolvemos pegar um desvio. André que vocês conhecem, daqui do Não Pod Tocar. Não conhecíamos tão bem o bairro, mas sabíamos qual direção tomar para chegar até onde o carro estava estacionado. Começamos a descer uma rua e do nada me dei conta de que uma moça andava do nosso lado e conversava com a gente. Pessoa simpática, falava de como ela gostava das ruas que descem. As descrições dela sobre as ruas eram ótimas, com várias analogias a sensações de paladar. Ela dizia algo assim “Sabe quando você come um prato picante e ele vem acompanhado de uma porção mais adocicada, que consegue cortar um pouco da picância? Você come o apimentado, o corpo esquenta, a língua adormece, e quando se está chegando no seu limite, você dá uma pausa em outros sabores, para, em seguida comer o picante de novo. Essa sensação de subir e descer na picância e nas sensações de calor do prato me lembram dessas ruas que descem, mas tem sempre um pequeno desnível para descansar as pernas que se esforçam em frear o corpo para que ele não desmorone”. Eu que ando vendo tanto drama coreano (que são tipo uma mistura de seriado com novela, não vou me ater em explicar e estragar a fala da moça desconhecida), eu adorei tudo o que ela disse. Estava encantada com a visualização de um grande prato de kimchi (acelga apimentada) harmonizado com pausas em carne com geleia de frutas ou mesmo missô. Figura interessantíssima, de calças jeans clara e blusa bege, tudo super neutro e harmônico, um pedacinho de couro amarrado nos pulsos, uma pulseira improvisada. Estava a pensar em cada detalhe da cena, quando me dei conta de que nossa terceira companhia original, que estava indo para o carro, não estava mais com a gente. Minha mãe havia sumido. Olhei para os lados e vi que ela tinha acabado de dobrar a esquina. Estava impaciente porque não queria se atrasar. Mas ia dar tempo, tinha que dar tempo, afinal, não dava pra ignorar a moça que tínhamos acabado de conhecer e que falava poesia de comida.
Quando terminamos de descer, vi minha mãe do outro lado da rua, parada na esquina. Esperando, séria. Alguns vão se reconhecer na sensação de estar em dívida com alguém, por fazer esperar. Detesto fazer as pessoas me esperarem. Sabe aquela coisa de você tá no supermercado e a pessoa diz “ai, fica na fila rapidinho que já volto?” E a pessoa não volta nunca? Fico pra morrer! André estava ainda a conversa com a moça da comida apimentada quando não entendi muito bem, meu corpo adiantou o passo. Parecia que ele tinha entendido algo que eu mesma não tinha ainda raciocinado. Se demoramos minutos para descer a rua, corri por segundos, e parecia que não era suficiente. A esquina ficava à uns 40 metros do carro estacionado. Ela não estava dentro do carro por ser perigoso. A esquina tinha movimento, parecia uma grande loja de departamento fechada, mas que abrigava algumas pessoas. Ao redor da calçada, uma proteção, daquelas que impedem o pedestre de atravessar em local indevido. Um grande corrimão que percorria toda a esquina. Quando me dei conta do corrimão e que o número de pessoas parecia ser maior do que eu imaginava, meu corpo já estava à mil, joguei as coisas que estavam em meus braços pro André, nem sabia que estava carregando coisas, ele não entendeu e eu só jogava e falava “pega porra” e saia correndo, as pernas mais rápidas que a fala e que os braços, acho que não disse nada, acho que não entendia, acho que só o corpo entendia, acho que não ia conseguir, fui chegando, passando por uma senhorinha, que não saia da frente, tipo shopping lotado em domingo de chuva, e um rapaz insistente que não me deixava avançar, todos andando na direção contra meu corpo, e minha mãe sumindo, descendo, só via sua cabeça, e ela afundava e dizia, não, me solta, me solta, por favor, não, não não, me solta e o cara segurava o braço dela, e o cara a afundava mais na calçada e eu com dificuldades tentando me aproximar e ele a cercava no corrimão e meu corpo não corria o suficiente, e eu sou pequena e foda-se, solta, solta, e a cara de pânico, a cara de mãe forte sumindo, a cara de mãe que sabe se defender e te proteger sumindo, e o pânico, e o choro, e o grito e o solta e eu acordei. Chorei por longos minutos, ainda com a imagem na minha frente, e as mãos esticadas puxando minha mãe daquela situação pavorosa.
***
Alguns temas me rondam no Não Pod Chorar, temas que quero ter um tempo para escrever sobre, para falar sobre, para externalizar preocupações, mas que, são tão difíceis de lidar, que apenas deixo para outro momento e o momento nunca chega. Se não fosse esse pesadelo, eu não falaria agora sobre violência contra a mulher, sobre a dificuldade de explicar que a sensibilização com um relato e uma vivência de violência é diferente entre um homem e uma mulher. Calma, sei que é extremamente arriscado fazer uma separação do mundo em duas partes, porque sabemos que não é bem assim, somos uma pluralidade incontável e um misto de diferentes reações. Essa separação é apenas a título didático e como toda didática, ela generaliza e exclui. Por isso, antes de prosseguir quero alertar que não é minha intenção de excluir as várias e várias exceções, mas frisar porque muitas vezes vemos uma cena de relato de violência contra a mulher e observamos que as reações são diferentes, por que a sensibilização é tão distinta? Eu vejo uma cena de puxão de braço em um filme, e aquilo já me incomoda, eu vejo uma cena de estupro e preciso dar uma pausa no filme para não desmoronar, enquanto um homem que assiste ao lado, não compreende a pausa. Ele sabe, ele espera, mas não consegue internalizar o mesmo pavor. O pavor que acordei com o pesadelo, do olhar à distância uma cena de abuso sexual e nada poder fazer, dessa impotência desesperadora, é o que nos move no dia a dia numa sensação constante de alerta. Não porque somos paranoicas, não porque somos frescas e exageradas, mas porque toda minoria sabe o risco que é quando não se está sozinho.
Para quem chegou até aqui, nesta escuta, e não está compreendendo muito bem o caminho para onde esta fala se destina, vale ouvir outros dois Não Pod Chorar. O anterior, na voz de Rodrigo Hipólito que fala sobre a questão do racismo, de como é complicado assumir que possa existir uma postura de vitimismo (pode acessar aqui). O outro Não Pod Chorar que recomendo é sobre frescura (pode acessar aqui). Ouvir estes materiais é importante para quem chegou até aqui e começa a pensar que é mimimi, é bom dar uma pausa.
Um podcast como este que traz informações, mas ao mesmo tempo, a experimentação de sensações, tem um grande desafio pela frente. Como criar uma fala da parte de uma mulher branca sem que se restrinja a uma questão racial e de gênero, que consiga atingir outras pessoas? Que não ocorra uma desistência da escuta a partir de pensamentos como “ah, vai falar de coisas de mulher, deixa pra lá”, da parte de um homem, ou “não acredito que uma pessoa que não foi vítima de violência está se sentindo violentada. Que ofensivo”, da parte de uma mulher legalmente violentada e protegida por lei. Realmente, é um assunto delicado, porque ele tem diferentes níveis de ação na nossa sociedade. Desde o agressor, a vítima, as testemunhas locais, o que vê pela televisão, a mulher que corre, o sujeito que corre da lei, a que sente culpa, o que sente prazer, aqueles que ignoram, todos na mesma trama. E não é uma cena em que os papeis estão tão bem definidos, muitas vezes assumimos mais de um papel sem parar pra pensar que o estamos fazendo.
Peço que tenham paciência e muita serenidade para pensarmos sobre o assunto. Mantenham em mente a imagem dos passos lentos, a aproveitar o vento fresco da noite que bate na nuca, que nos refresca, que nos permite dar uma pequena pausa. Essa pausa não é um momento de fuga, mas um gigantesco esforço de compreender que a experiência do outro é importante e ela se torna parte de nossa experiência quando começamos a pensar sobre os nossos papéis dentro desta cena, que é uma cena cotidiana.
[“MEDO”, Documentário sobre Feminicídio, Caso Josilene Galdino e Vitória Charleane];
Esse relato real sobre Josilene, a partir da voz de sua sobrinha, é uma de tantas e tantas história que se repetem e nos faz questionar se há lugar seguro para a mulher. Foi esta uma das preocupações para o levantamento de dados pelo Datafolha feito em fevereiro deste ano de 2019, encomendada pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), para avaliar o impacto da violência contra as mulheres no Brasil. Vou deixar no post do episódio os links dos relatos e desta reportagem da BBC News que diz que nos últimos 12 meses, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. Dentro de casa, a situação não foi necessariamente melhor. Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico. Após sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda.
O levantamento, divulgado nesta terça-feira, levou a diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno, a questionar a existência de espaços em que a mulher possa se sentir efetivamente segura no país. “Ela está sofrendo violência dentro de casa, aí ela pega o metrô para ir para o trabalho, onde também vai ser assediada. Qual é o lugar seguro, então? Ele existe?”
Os novos dados corroboram o que outras pesquisas já mostravam. Grande parte das mulheres que sofreram violência dizem que o agressor era alguém conhecido (76,4%). Mulheres pretas e pardas são mais vitimadas do que as brancas; as jovens, mais do que as mais velhas.
Mas quando olhamos para o assédio, o espaço público tampouco é seguro. O número de mulheres assediadas fisicamente no transporte público, quase 4 milhões, é enorme. Não tem um espaço onde a mulher efetivamente está segura. A mulher está sofrendo violência dentro de casa, aí ela pega o metrô para ir para o trabalho, onde também vai ser assediada. Qual é o lugar seguro, então? Ele existe?”.
Tem outros dados interessantes na matéria, mas, não quero deixar que a escuta de vocês encare os números pelo contrário do que são. Quando ouvimos estatísticas como estas, que transformam dor e morte em números, temos a impressão de distanciamento. Mas também não quero uma escuta sensacionalista maluca. Então, vamos para o micro, para o dia a dia, porque é no cotidiano que todos nós nos encontramos, nessa correria maluca de várias tarefas e expectativas a cumprir.
Vamos.. ao cinema. Você, homem, tava lá com uma amiga esperando na fila pra entrar na sala de cinema. Passou por aquele momento terrível de resistir a não pagar um valor absurdo por uma pipoca, porque o ingresso em si já é absurdamente caro. Vocês conversam sobre preços, sobre comida, sobre o que farão depois do filme, comentam coisas divertidas que esperam do filme, e aí, antes de entrar na sala, vocês decidem ir ao banheiro. Você entra, faz seu xixi, sai e espera a amiga sair. Ela, mulher demora mais que você. “Deve estar se olhando no espelho”, pensa. E aí volta ela a passos largos, coloca um sorriso no rosto e vocês entram pra ver o filme. Mas, volta, volta a cena, porque tem muita coisa aí no meio não dita. Ela entrou no banheiro, assim que fez a curva da parede que esconde a parte interna do banheiro, ela deu uma pequena pausa, rápida mesmo, de segundos, analisou o banheiro “limpo e vazio”. Passa apressada pelas cabines, olhando por baixo de algumas portas, demora a abrir uma. Entra, mas o banheiro não estava tão limpo assim. Vai pra próxima cabine. A porta não tranca. Vai pra próxima, não tem papel. E em mais uma tentativa, encontra um lugar mais adequado. Se equilibra para segurar as sacolas e o próprio corpo, para não sentar na tampa do vaso, por uma questão de higiene. É uma quase-cócoras, um movimento de agachamento leve. Uma mão segura a sua roupa para baixo, outra as sacolas e o olhar fica entre ver para baixo e se certificar que a urina está indo pro lugar certo, e ver para frente, a vigiar, a porta, que mesmo trancada ainda não é o suficiente, e a vigiar qualquer movimento. Pronto, deu descarga, se vestiu e está pronta para sair. Mas alguém está no banheiro, ouviu a torneira. Respira fundo e abre a porta. É outra mulher. Ela se aproxima e vê a cara de susto da outra que não sabia que estava acompanhada. As duas riem para si mesmas, lavam as mãos e saem juntas. Mal viram o espelho.
Dizem que em lugares públicos, o banheiro feminino é o lugar que consideramos mais seguro, um refúgio. Em vários sentidos, é mesmo. E quando ele parece ser uma ameaça, é acionado um botão de alerta. Para fazer esses comparativos, perguntei para amigos homens de como é a ida ao banheiro público, que tem seus desafios, sempre, viver, é bem isso, mas raramente passam por um estado de alerta antes de algo muito óbvio, como ver um homem no banheiro com uma faca. E, na verdade, foi de tantas outras situações que veio a vontade de falar sobre vivências do dia a dia, que para muitas pessoas, principalmente para as mulheres negras, desemboca num extremo que pode lhe custar a vida.
Muitas situações são vivenciadas, mas raramente falamos sobre elas com homens, em geral, compartilhamos essas experiências com outras mulheres. Mas, nos últimos dois anos, tenho mudado essa postura. Só hoje essa mudança tem se tornado mais clara, porque consegui encontrar pessoas do gênero masculino que conseguissem minimamente dialogar sem cair em clichês desanimadores. Dessas conversas, comecei a perceber de modo mais profundo como nossa sociedade é desigual e como isso marca nosso dia a dia. A gente sabe, pelas estatísticas, mas a vivência, é um passo para a internalização de que você faz parte da estatística, de algum modo.
Eu marquei de me encontrar com um amigo em um restaurante que eu não conhecia, em Pinheiros. Pinheiros é um bairro da zona Oeste de São Paulo, conhecido por seus bares, cafés, galerias de arte, bistrôs, lugar caro, classe média alta a nobre, perto de Jardins, região de bairros nobres, enfim.. é esse o clima do lugar. Mas, como em toda metrópole, tem, entre ruas movimentadas, espaços ermos, vazios, que denunciam as desigualdades sociais. Fui eu, toda feliz, desci do metrô, liguei meu maps, coloquei o nome do restaurante e tava seguindo o mapa de boas. Decorava as ruas, e olhava de vez em quando o mapa para ter certeza da direção. Santo GPS. Mas aí que eu precisei passar por um lugar escuro, guardei o celular, respirei fundo e fui. No meio do caminho, senti medo, atravessei a rua e, pra meu espanto, dei de cara com o restaurante que eu não estava encontrando, porque ele tava do outro lado da rua. Quando contei pra meu amigo da saga do outro lado da rua, ele disse: “que bom que encontrou e deu tudo certo! Mas às vezes vale voltar um pouco o caminho quando achar que ficou perigoso e pedir informação. Eu sou um cara que não tem vergonha de pedir informação”. Essa frase me deixou super, super pensativa. O que ela quer dizer? Primeiro que há um consenso de que homens não podem pedir informação porque eles têm que saber sempre onde estão e ter sempre razão de suas decisões. Lembro que sair com meu pai às vezes era um inferno! A gente dava mil voltas, sabendo que tava errado, mas nunca ia ferir seu orgulho machista pra dizer que não sabia o caminho e precisava de uma informação. Minha mãe, mais faladeira, principalmente depois que meu pai morreu, já abria o vidro num sorriso e pedia informação. Eu, a vergonha da timidez em pessoa, não me enquadrava em nenhum dos casos, mas, mais por um outro motivo, que não a personalidade. Em geral, essas informações eram pedidas enquanto se dirigia. Enquanto você está protegido dentro de uma armadura que te permite acelerar e fugir se necessário. O que uma mulher, à pé, que é minha vida, pode fazer se ela precisar fugir? Correr nem sempre basta. Então, não é uma opção mostrar que estou perdida e que preciso de informação. Até conversar sobre como vivemos situações cotidianas, das diferenças entre gêneros nesse mundo maluco, não tinha percebido que muitas vezes eu não pedia informação não porque eu sou tímida, mas porque eu não posso mostrar vulnerabilidade. Um homem quando diz estar perdido, é apenas uma pessoa perdida. Uma mulher perdida, é uma mulher sem proteção e potencial vítima. E aí percebi como minha vida, e provavelmente de tantas outras mulheres mudaram depois da invenção de apps de localização. Sigo confiante, de cabeça erguida, como se fosse a dona da porra toda, como se fosse inatingível, para esconder que sou sempre uma vítima em potencial. Se me perco, encontro um local minimamente mais seguro, onde possa ver o celular, para poder me localizar e seguir viagem até o ponto que preciso estar. E não quer dizer que este ponto seja realmente seguro, porque a potencialidade de ser uma vítima é uma constante.
[Áudios de vítimas de violência doméstica publicados pela Polícia Militar de Santa Catarina]
Às vezes parece que nos esquecemos disso, ou damos a entender que esquecemos, mas o corpo está 100% alerta. Ele corre antes mesmo da gente raciocinar que deveríamos correr. Lembro aqui do maldito pesadelo. Vi minha mãe e não sabia por que, já estava correndo para socorrê-la. Tanto vocês, quanto eu, devem ter se agoniado com o contraste entre uma distração com uma noite gostosa, uma companhia agradável, e uma ação de violência. Eu estava em companhia de duas pessoas, a descer uma rua: André, homem, branco, na faixa dos 20 anos; e uma outra mulher, branca, na faixa dos 30, de certo modo, semelhante a mim, porque ela também era branca, mas, diferente, porque ela não conhecia minha mãe. Esse foi o diferencial maior de reação. O corpo emite uma série de falas que podem ser captadas à distância. Eu sabia que aquela era uma situação de risco, porque vi a reação física inicial da minha mãe, porque a comparei com outros momentos, eu sabia que era uma situação muito atípica. Mas, a outra mulher, mesmo que pudesse desenvolver uma empatia de situação, não reconheceria a urgência de um cerco, pois havia outras pessoas ali. Outras muitas pessoas que negaram o fato: uma velhinha, que mal andava, cheia de suas impossibilidades de lidar com as suas próprias dificuldades de sua vida; um rapaz que andava na direção contrária e pouco se importou com meus empurrões para alcançar minha mãe, e outras pessoas passantes, que só passam, que não veem, porque nos dessensibilizamos, ou, nunca fomos de fato sensíveis a tal questão. E André não viu, não entendeu os sinais porque é homem, ele tem que vencer uma série de outros problemas antes de alcançar o entendimento da situação. O padrão desta cena é cotidiano. Acontece com frequência.
E foi na conversa sobre a importância dos apps de localização, que compreendi por que pessoas idosas, por exemplo, me pedem informação com frequência. Não compreendia por que motivo eles me viam a metros e metros de distância, passavam por várias pessoas, ignoradas, e vinham em minha direção pedir uma informação. Eu, besta, achava que era por eu ser solícita, por ter uma aproximação muito forte com questões que lidam com o idoso, da sensibilidade e atenção em reconhecer alguém perdido à metros e metros, e esperar a pessoa vir até mim e poder ajudá-la, como se eu a estivesse chamando. Mas, não, não é por simpatia, nem por estar disponível. Meu amigo, o do restaurante me corrigiu “não, não é porque você sorri pra eles. Eles vêm até você porque você não é uma ameaça”. Oh, my goldinho, eles vêm até mim pelo simples fato de que eu tenho um 1 metro e meio, sou mulher, branca, não sou uma ameaça estereotipada em nenhum nível. Olha como que a escolha de pedir informação deflagra várias questões de violência e de racismo. Não me recordo de ver um idoso tentando pedir informação para uma pessoa de forte estrutura física, pra alguém que poderia agredi-lo fisicamente. É uma simples informação de rua, de caminho, que se quer, mas para tê-la, terá que dar a informação de que você não sabe onde está e pode ser facilmente enganado e violentado. Na dúvida, e aí vem o papel do NPC também de pensar modos de lidar com tudo isso, eu tenho baixado o maps e o moovit, que me ajudam a me localizar nas ruas e a me movimentar por ai. Mas sei que esses apps estão longe de ser o suficiente para se sentir segura, mesmo eu estando numa bolha ainda privilegiada. Aí que vem o impacto maior. Se eu, numa situação em que eu me sinto uma vítima em potencial, eu sou uma vítima em potencial, outras pessoas, em outras situações já são uma vítima de fato. E isso é muito pesado, o mundo é muito pesado.
Vou me adiantar nos causos, porque o áudio está ficando mais longo do que eu imaginava. Resumindo até aqui, uma mulher está sempre em plano de fuga, mesmo dentro de casa. Preferia usar esse acontecimento com minha vó numa situação mais engraçada, mas é isso, vida, a gente ri e chora nas mesmas frases. No Não Pod Chorar de n.02, Como não se esquecer do Alzheimer, eu falei da doença da minha vó e no finalzinho disse que ia contar um causo futuramente. Eis o causo: Um dia, liga o meu tio, que mora com minha avó e meu avô, aqui pra casa. Ele estava todo nervoso porque minha vó estava muito agitada, ela dizia que queria falar com minha mãe, com urgência. Na época, minha vó ainda se lembrava da gente e conseguia verbalizar. Durante mais de um ano ela só tinha se esquecido de uma pessoa próxima, o meu avô. Meu tio passou o telefone pra minha vó e eu só vi minha mãe desligar o telefone e dizer “quer ir junto?” e lá fomos nós ajudar minha vó. Ela não quis dizer muita coisa no telefone, mas minha mãe sentiu que era uma situação que precisava mesmo de ajuda, não era um tipo de situação que ela esqueceria em alguns minutos. Quando chegamos, minha vó estava agitada, mas não dizia o que era. Depois de uns minutos na sala, ela veio quietinha e disse pra minha mãe que estava com muito medo. Ela disse que era separada, e que o namorado dela estava viajando e que ela estava com medo, porque tinha aparecido um homem na casa, e ele estava ali na cozinha. E ela não sabia bem quem era ele, e ele estava dando encima dela, a assediando. Ela tinha medo do marido dela chegar, o ex-marido, além do namorado, e os três se encontrarem. Ela tinha muito medo de ficar ali sozinha e queria que o homem da cozinha fosse embora. Bem, todos os três homens, eram o mesmo, o meu avô. Às vezes ela trocava os papeis, dizia que tinha três namorados, três maridos, três homens, mas o fato é que ela tinha medo de todos eles e que eles brigassem e a culpa sempre seria dela. Demorou um bom tempo pra gente convencê-la de que o homem da cozinha, cuidaria só da casa e estava ali pra ajudá-la. “Ele veio pra cuidar da senhora, vó. Mas a gente tá mesmo é ajudando ele, porque ele também precisa de ajuda”. A solução foi apelar para o lado caridoso dela, para amenizar o medo. Caridoso, ou daquele papel que a ensinaram assumir, de cuidadora da pessoas. Mas ela sempre estava com medo. Na hora do banho, ela gritava, “me solta, me solta, não!”, bem parecido com meu pesadelo. Toda vez que ela se sentava, se esforçava para puxar o vestido para baixo, cobrir os joelhos e as pernas. Isso denunciava o quanto ela tinha medo do próprio corpo ser visto, porque tudo era culpa dela, por não se cobrir direito. Ela já fazia isso quando não estava doente, mas o paciente de Alzheimer deixa tudo mais evidente, porque faz isso a cada segundo, de modo repetido e brusco, várias e várias vezes, até desgastar a parte do vestido que mais puxa, até deixar o tecido fraco, de tanto insistir que ele cubra, cubra tudo. Como é difícil pensar que foi esta a educação que ela recebeu. E como que foi essa vida dela que não conhecemos. Como ela se sentia como mulher no interior, há tantas décadas, num contexto completamente diferente de hoje, sem as conquistas mais atuais do feminismo. Os detalhes do dia a dia denunciam o modo como nos sentimos o tempo todo – em estado de vigilância, a tentar reconhecer qualquer tipo de ameaça no ambiente. Isso causa estresse, mas não só, mostra como a mulher é extremamente vulnerável na sociedade.
Ao conversar sobre essas observações com minha mãe, falamos da educação que minha vó deve ter recebido, e a educação que ela deu para minha mãe. Ela explicava, do modo dela, o que seria um caso de abuso, e como minha mãe deveria agir. Ensinamentos passados entre mulheres. E nestas conversas chegamos ao problema da educação. Se mais de 76% dos casos de violência contra mulher são praticados por pessoas conhecidas pela vítima, a quem ela pode de fato recorrer e como? De todas as perguntas que nos fizemos, minha mãe e eu, a resposta não foi outra, precisamos de educação sexual nas escolas. Precisamos de uma outra instância que possa dar respaldo para as mulheres. É impossível recorrer a quem se conhece, pois todos estão envolvidos, mesmo que em papeis diferentes.
Mesmo que minha vó tenha instruído minha mãe sobre como reconhecer um abuso (lembrando que ela não usava estas palavras na época), o primeiro passo seria a mãe contar tudo para a minha avó. Mas, o que minha vó poderia fazer? levar para a polícia, como um caso legal, num tempo em que nem existia lei maria da penha? Muitos dos casos ficam no interior da família por envolver tantas outras questões que são também de um enraizamento cultural – da vergonha, da culpa. Lembremo-nos do irmão que alerta a irmã sobre não sair com determinada roupa porque ela pode se tornar uma potencial vítima.
Quando acordei do pesadelo, de ver minha mãe a sofrer abuso e diante da minha impotência, eu chorei, chorei por um bom tempo. Não foi pelo sonho, mas por toda a situação em que vivemos. Por me dar conta de que essa violência é cotidiana e como isto é sufocante. Tudo o que uma mulher faz, todas suas escolhas simples e cotidianas giram em torno desta preocupação em ser agredida: que batom vou usar? que roupa posso colocar? Que comportamento, que modo de falar posso assumir? que locais e horários posso circular? Onde moro? Em que andar? quem são meus vizinhos? quem são meus familiares? como é a relação com meus familiares? quem são meus vizinhos? eu tenho amigos? que amigos são esses? quem cerca meu dia a dia? eu consigo ficar sozinha ou sentirei culpa por preferir estar sozinha do que na companhia de outras pessoas?… Todos esses questionamentos entram no mesmo enraizamento do problema. O modo como lidaríamos com estas perguntas certamente seria diferente se a educação fosse envolvida. Mas, se a educação, e falo isso como educadora, está em situação de risco, imagina o que está tudo ao redor dela, como que anda?
No primeiro episodio desta temporada, sobre mulheres radicais, falamos sobre mulheres artistas que lidam com a questão do corpo e da violência e vale a pena voltar em alguns destes pontos. Como que os ambientes culturais absorvem a nossa relação com o mundo e que essa violência contra a mulher é também matéria-prima para a arte. Principalmente quando falamos de mulheres artistas, porque este tema da violência toca profundamente a nossa vivência. As situações cotidianas, como a ida ao banheiro, comentada anteriormente, será encarada de um modo diferente visto que vivemos em um mundo patriarcal. O entorno de um ato de violência é complexo, ambientado em estruturas que reforçam o distanciamento de vivências e diminuem a empatia. Para finalizar, indico também, nessa pequena revisão de tudo o que temos falado nos episódios, o Não Pod Chorar 07 – Como ficar de boas com a maternidade. Não porque é um assunto que poderia se ligar à mulher, mas porque lá trabalhamos algumas indicações que nos dão esperança de que a educação, a leitura e o diálogo construam uma nova sociedade que me permita dormir mais tranquila.
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