Crônica de Fabiana Pedroni
A partir da leitura de DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa: KKYM, 2012.
Desde aquele dia em que nos encontramos, não pude mais sair de casa sem me sentir perseguida. O medo da esquina era real. O terror da possibilidade de encontrar, acidentalmente, aquilo de que se foge, estremece os passos de qualquer caminhante nesse mundo. A esquina é aquele lugar comum do acidente prenunciado. Você sabe que está no meio de um fuga, sabe que cada esquina guarda um potencial enfrentamento inevitável. Como você pode saber? “Para saber, é preciso imaginar-se”, como você me alertou naquele dia. E é preciso saber. É preciso dizer o indizível. É preciso imaginar o inimaginável. Não estamos em um tempo apropriado para fugas, talvez esse momento nunca tenha existido, mas insistimos em fugir sempre que somos tomadas pelo medo.
E foi assim, desde nosso primeiro encontro. Por muito tempo, eu diminui o passo ao dobrar uma esquina. Tateei, espiei, senti-me confortável antes de dobrá-la.* Mas, agora, mesmo imóvel, a esquina me invade. Não existe mais perseguição se o algoz perpassa e invade aquele que foge antes mesmo de alcançá-lo.
Serei mais explícita na descrição dessa fuga impossível: não se foge daquilo que não te persegue. Não se foge daquilo que é dilacerante dentro de si. Finge-se que foge, mas, no fundo, o nome disso culpa.**
Desde que me esbarrei com o livro “Imagens apesar de tudo”, de Didi-Huberman, senti culpa por minha própria existência. Eu fugi o quanto pude desta leitura. Esforcei-me, muitas vezes, em dizer que conhecia seu conteúdo e, logo, dobrava/atravessava a esquina com pressa. A gente foge e evita aquilo que amedronta, aquilo que testemunha nosso pertencimento a uma história medonha.
Esta não é uma resenha de um livro. Este é um relato de fuga e encontro inevitável.[1] Este é um relato do encontro do sujeito com aquilo que ele tenta ignorar: a aterradora possibilidade (já comprovada) de deixar sua humanidade, de cair para fora de si (Maurice Blanchot). Essa esquina que cruzamos há muitos anos, durante o holocausto, ridiculamente por uns hoje negado, separa a humanidade da impossibilidade de afirmação incontestável de suas bases após tal horror.
Encontrar em palavras aquilo que parece indizível, encontrar em imagens aquilo que era inimaginável, é uma tormenta para aquele que acredita na fuga. A culpa que me fez querer fugir desta leitura vem da consciência da necessidade de se estar atenta, de não ignorar o passado, pois ele é sempre presente.
Hoje, já não posso pisar na rua e dobrar/atravessar uma esquina qualquer sem ter a imagem de alerta sobre cada ação direcionada ao outro. O encurtamento das distâncias físicas pelo digital aproximou os algozes de suas vítimas e nos alarmou da potencialidade tirana. “Para saber, é preciso imaginar-se” (p.15), para gerar conhecimento, é preciso colocar-se em meio à imagem, trazer para dentro do relato, do registro, do passado, o que nos une como semelhantes. Somos sujeitos dessa história, somos humanos o suficiente para sabermos da nossa capacidade de deixarmos nossa humanidade. Essa potencialidade é assustadora e cada vez mais próxima.
Ler sobre Auschwitz, adentrar nas imagens e nos relatos de sobrevivência, é encontrar um presente assustador. Não há mais tempo para fuga, não há mais a possibilidade de não ler as palavras escritas e ver a fumaça que se esvai dos corpos incinerados. Nos manchamos de cinza a cada esquina evitada.
*Dobrar uma esquina ou atravessar uma esquina? Tenho a impressão de que esquinas não são apenas uma curva e uma mudança de direção, mas outra espécie de mudança. Talvez, ao dobrarmos uma esquina, também atravessemos para outro mundo, outra página, outra vida.
** A culpa pode, sim, ser uma perseguidora. No entanto, como perseguidora, a culpa gira sobre si mesma, como um peão pesado, que finca a ponta de metal no estômago e se recusa a parar.
[1] Link de resenha do livro [em breve].
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