[artigo] Subversão e Dependência das Tecnoimagens: Paisagem e Câmara Escura na Arte Atual

Nilufar 1

Nilu Izadi, “Western Sahara”, 2006. Câmara escura montada no deserto da Argélia com tendas de tecido de algodão. Fonte: http://nilufar.co.uk/

Referência completa: HIPÓLITO, Rodrigo; PEDRONI, Fabiana. Subversão e Dependência das Tecnoimagens: Paisagem e Câmara Escura na Arte Atual. Palíndromo, v. 12, n. 28, p. 062 – 075, ago. 2020.

Resumo: Este artigo fala sobre a construção de câmaras escuras para o estudo da paisagem na Arte atual. Com tal foco, pensamos a estruturação da paisagem como da ordem da subjetividade através do conceito de stimmung, de Georg Simmel, e estabelecemos um diálogo com o sentido de tecnoimagem, de Vilem Flusser. Diante da experiência do sujeito com o “recorte” instituído pelas tecnoimagens e da larga disseminação permitida pela reprodução digital, pensamos os trabalhos de Abelardo Morell e Nilu Izadi como estratégias de subversão do olhar fotográfico. Tal subversão exigiria a presença do indivíduo como parte da construção e revelação do sentido da paisagem. Inclui-se, neste texto, a pergunta pelos limites das estratégias dos artistas citados, tendo em vista que a sobrevivência, difusão e estudo destas obras dependem, em certo nível, da produção e contato do público com tecnoimagens.

Palavras-chave: Paisagem, Imagens Técnicas, Fotografia, Câmara Escura.

Abstract: This article talks about the construction of camera obscura for the study of landscape in contemporary art. With such focus, we think of the structuring of the landscape as of the order of subjectivity through Georg Simmel’s concept of stimmung, and we establish a dialogue with Vilem Flusser’s sense of technoimage. In view of the subject’s experience with the “clipping” instituted by technoimages and the wide dissemination allowed by digital reproduction, we think about the works of Abelardo Morell and Nilu Izadi as strategies for subversion of the photographic gaze. Such subversion would require the presence of the individual as part of the construction and revelation of the sense of the landscape. This article includes the question of the limits of the strategies of the artists mentioned, considering that the survival, diffusion and study of these works depends, to a certain extent, on the production and contact of the public with technoimages.

 Keywords: Landscape, Techoimages, Photography, Camera Obscura.

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Introdução

Georg Simmel, em “A Filosofia da Paisagem” (2009),[1] nos fala como soa contraditória, como definição de paisagem, a ideia de “um pedaço da natureza”, posto que a natureza não se apresentaria em pedaços, mas numa integração impossível de ser rompida. O que nos permitiria seccionar um conjunto de entes de seu estado natural e apresentá-los como uma situação paisagística, isto é, que forme uma unidade que reconhecemos como paisagem, seria um estado de espírito que o autor denomina stimmung. Nesse estado de espírito, está contida uma defesa de que nos relacionaríamos animicamente com todo o lugar em que possamos habitar e sobre o qual possamos ter uma visão, isto é, do qual formaríamos uma imagem.

Para sermos tomados pela visão de uma paisagem, construiríamos uma posição sobre um conjunto de entes no mundo e lhe conferiríamos uma unidade como campo, no qual poderíamos atuar. A formação desse conjunto de entes como uma unidade dependeria da disposição do sujeito que estabelece as relações significativas entre as partes. A paisagem não é dada por natureza, mas construída.

O sentido de stimmung é da ordem da subjetividade (COELHO, 2011, p. 4) e, por isso, nos permite dissociar entes da natureza e integrá-los num sentido outro, que designamos como paisagem, mesmo que nem todos os conjuntos de objetos dissociados sejam encarados como paisagem. O tratamento que Simmel dá ao conceito de paisagem, ainda como partícipe de um esforço para compreender o olhar moderno, citadino, sobre a natureza pitoresca, serve bem à discussão mais ampla sobre a paisagem, pois o stimmung exige que se considere a formação do conhecimento intuitivo do mundo. Percebemos, no texto de Simmel, uma crítica densa aos princípios da ciência moderna e da religião como formadoras de verdades provindas de suas normas interiores:

A religiosidade, em cuja tonalidade vivenciamos inúmeros sentimentos e destinos, não deriva – ou, por assim dizer, só ulteriormente provém – da religião como um particular domínio transcendente; pelo contrário, a religião brota dessa religiosidade, na medida em que esta cria e extrai de si própria conteúdos, em lugar de formar e colorir os que são dados pela vida e, depois, na vida se entremeiam.

As coisas não se passam de modo diferente na ciência. Os seus métodos e as suas normas, em toda a sua intangível altura e soberania, são, porém, as formas do conhecer de todos os dias, feitas autônomas, que alcançaram a hegemonia. Estas são, sem dúvida, simples meios da práxis, elementos úteis e de certo modo contingentes, entrelaçados com tantos outros para a totalidade empírica da vida; mas, na ciência, o conhecimento tornou-se fim em si, um domínio do espírito administrado de acordo com uma legislação própria – todavia, com esta ingente deslocação do centro e do sentido, ela é tão-só a limpidez e a estruturação em princípios do saber disseminado na vida e no mundo quotidiano. (SIMMEL, 2009, p. 10)

A posição marcada de Simmel frente à relação calculada com o mundo, que a ciência moderna prega, é também um posicionamento positivo frente ao entendimento fenomenológico da realidade. Postar-se diante do mundo de modo ativo, efetuar um recorte dos entes e relacioná-los reflexiva e intuitivamente, é atuar no sentido do stimmung, pelo qual a paisagem é concebida na estruturação de um campo de visão que possa reunir e conferir significados às coisas sobre as quais o ser humano se debruça.

Num sentido oposto, aparece o raciocínio de Vilém Flusser, com suas conjecturas acerca das “imagens técnicas” e da necessidade de se pensar um novo modo de relação com o mundo, o qual considera a natureza desse tipo especial de imagem em sua vasta influência no nosso comportamento.

Encontramos, em “A Filosofia da Caixa-Preta” (2002), uma proposta de início para uma “filosofia da fotografia”. Com vistas para a grande transformação efetuada no sistema de representação imagética do mundo com o aparecimento da fotografia, Flusser busca demonstrar que a maior parcela do poder produtor da imagem fotográfica pertence e é delimitada pelas possibilidades inscritas na própria câmera, entendida na ideia ampla de “aparelho”.

A vanguarda de Flusser é o escândalo de sustentar um mundo em que o humano não se mostra mais como mera relação tensa entre natureza e cultura, mas em que a fissura entre natureza e cultura é evidenciada pela máquina, cuja expressão mais sutil é a ideia de “Aparelho”. (TIBURI, 2008, p. 13).

Por “aparelho”, não devemos compreender diretamente a máquina, mas todo e qualquer mecanismo produtor de artificialidade, através do qual a máquina atua. Mais do que um mediador entre natureza e cultura, os complexos mecanismos produtores de artificialidade, os “aparelhos”, constroem realidade, produzem um mundo de natureza distinta. A fotografia é eleita por Flusser como um produto de “aparelhos” com o qual estabelecemos relações que podem se confundir com as imagens de outra natureza, ditas tradicionais.

Toda a imagem produzida por uma câmera fotográfica está previamente inscrita, isto é, programada na estrutura do aparelho. Nenhum aparelho funciona sem uma programação e esta define o que pode ser feito pela máquina e como podemos utilizá-la. Inscrita nessa determinação, a representação de mundo provinda da imagem fotográfica encerra-se em nosso olhar, em nossa escolha, somente pelas possibilidades previamente estabelecidas para nossa decisão pelo aparelho.

Dentro da caixa-preta, realiza-se um mistério, o qual o fotógrafo não necessita desvendar. Não é requisitado do fotógrafo que conheça a estrutura de funcionamento do aparelho e tampouco as características do “programa” ao qual a máquina obedece. Para fotografar, bastaria decidir entre os recortes que a máquina possa realizar e, então, apertar um botão. A isso se limitaria a participação do sujeito no ato fotográfico, na visão de Flusser. O produto desta deliberação chamamos de “imagem técnica” ou “tecnoimagens”.

Nas próximas páginas, estabelecemos relações entre a filosofia da paisagem de Simmel, o entendimento de “tecnoimagem” de Flusser e as pesquisas poéticas de Abelardo Morell e Nilu Izadi.

Subverter Tecnoimagens para Produzir Paisagens

Através da filosofia da fotografia proposta por Flusser, compreendemos que o desconhecimento da programação vigente no aparelho pode ser reconhecido como modo de relação do indivíduo que dispara a câmera com a imagem resultante desse disparo. Encarar a imagem fotográfica como fiel ao mundo captado é outra parte deste modo de relação. Embora a imagem fotográfica seja uma representação do próprio programa existente no interior do aparelho, a ignorância dessa programação põe a imagem técnica como o registro mais fiel do mundo visual. Se assumirmos a imagem predeterminada como representação mais fiel do mundo visual, teríamos, através dela, uma relação predeterminada com o próprio mundo.

Ao caminhar por uma realidade de imagens programadas, estaríamos inseridos na programação. A predeterminação do recorte que fazemos do mundo como uma atitude limitada por aparelhos evidencia-se com a criação das “imagens sintéticas”. De natureza completamente distinta, as imagens sintéticas seriam aquelas criadas a partir de códigos e constituídas por sua escrita no interior dos programas, como as imagens feitas por computador. Com esse tipo especial de imagem, teríamos uma tecnoimagens que são pura superfície. As imagens sintéticas existem como imagens apenas na tela e de modo descontínuo. Ao se apagar a tela, as imagens retornam à condição de código imaterial. Assim como com relação às imagens fotográficas, Flusser nos lembra que o sentido das imagens técnicas é a apresentação de sua própria natureza, isto é, trata-se de imagens que nos mostram imagens, não seriam propriamente representações de alguma parcela real do mundo. Elas não possuem profundidade e não são totalmente transparentes na sua vacuidade. [2]

Nas imagens sintéticas, podemos perceber com maior nitidez a verdadeira força que permite que as imagens técnicas funcionem, apareçam e aparentem o mundo: o cálculo científico moderno. Elas independem da existência de significados ou de mensagens a serem passadas, assim como independem de estruturas naturais que precisem ser representadas, registradas. As imagens sintéticas são a apresentação de um código em uma aparência, são compostas por partículas infinitesimais, ao ponto de lhes atribuirmos dimensões nadificadas, dimensões que não podem ser apreendidas sensorialmente, mas apenas pelas “crenças” nas realizações misteriosas do interior da caixa-preta.

O cálculo científico não necessita de qualquer resultado além da correta fórmula. As imagens técnicas são os resultados de formulações e, como todo o resultado correto, estão pressupostas nas fórmulas que as antecedem. A atribuição de sentidos para entes parece, então, correr risco quando assumimos as imagens que mostram apenas a si mesmas como aquelas que melhor nos contam o mundo. Imagens sem original, isto é, simulacros, parecem nos atirar para o niilismo.

E mais de três mil anos se passaram até que tivéssemos “descoberto” este fato, até que tivéssemos aprendido que a ordem “descoberta” no universo pelas ciências da natureza é projeção da linearidade lógico-matemática dos seus textos, e que o pensamento científico concebe conforme a estrutura de seus textos, assim como o pensamento pré-histórico imaginava conforme a estrutura das suas imagens (FLUSSER, 2008, p. 17).

Percebemos que as ciências formulam as representações do mundo que constroem enquanto caminham pela técnica e pelo cálculo. Quando se entende tal fato, as pedras (cálculo) do cordão histórico se soltam e forja-se uma condição niilista. Pela defesa de Flusser, com a consciência dessa situação, o ser humano escapa da condição histórica e habita na pós-história. Nessa nova condição, o homem é um jogador. Ele joga com os conceitos calculáveis, com os dados contáveis. (FLUSSER, 2008, p. 17).

Esse é o “modelo fenomenológico” da história da cultura que Flusser desenvolve para lidar com as imagens técnicas: “Tridimensionalidade / bidimensionalidade / unidimensionalidade / zerodimensionalidade” (FLUSSER, 2008, p. 18).

No conjunto de ensaios, “O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade” (2008), Flusser dá continuidade à “Filosofia da Caixa Preta” e explicita caminhos possíveis de uma sociedade tomada por imagens sintetizadas. Se o modo como nos relacionamos com as imagens atuais não é o mesmo dispensado para as imagens tradicionais, então, a diferença de natureza entre esses tipos de imagens torna diverso também o conteúdo que podem transmitir.

A conjuntura que se forma quando enxergamos o mundo pela nadificação pertencente às imagens técnicas poderia tomar uma conotação de desastre. Porém, para Flusser, o modo de relação do sujeito atual com o mundo, definido pela atividade indireta do sujeito sobre o mundo, colocaria o sujeito na condição de livre criador. Se pensarmos as imagens técnicas pelo poder dos aparelhos e o próprio ser humano como um programador-programado, a nova relação estabelecida com o mundo seria a de “apontar” e discernir entre informação nova e informação redundante. O processamento dos dados não caberia, necessariamente, ao humano, mas aos aparelhos cada vez mais capazes de cruzar conteúdos para gerar situações improváveis. O poder do ser humano e, deste modo, também aquilo que o mundo exigiria do ser humano, seria o esforço de demandar ações e pinçar informações novas, situações improváveis: criar.

O mundo para o qual Flusser nos conduz é um mundo de puros criadores. O grande desafio seria manter a consciência e a qualidade de “sensor” diante da nulidade carregada pelas imagens sintetizadas, da qual tentamos fugir como vampiros da cruz. Um sujeito que vivesse religiosamente, como é o comportamento que o autor propõe para essa “nova espécie” humana (posto que a crença na capacidade calculadora dos aparelhos eleva-se mesmo para além do discurso e da percepção) provavelmente não possuiria mais a qualidade de uma recepção crítica, necessária para lidar com a avalanche de improbabilidade que os aparelhos atuais criam. A morte da cultura na solidão e no tédio é o fim mais reconhecível nesse cenário sem objeto nem sujeito.

Mas, talvez não possamos reconhecer essa revolução como positiva e sejamos também incapazes de realizar uma revolução comportamental equivalente ao poder da técnica, pois somos seres da História, seres passados. [3]

Podemos conectar os pensamentos de Simmel e Flusser num mesmo conjunto de questionamentos sobre as transformações nos caminhos de Natureza e Cultura, porém, como posturas opostas: enquanto um (Simmel) pede a retomada de uma relação fenomenológica com a paisagem e entende esta e o mundo no qual ela se insere como o resultado de uma experiência objetiva/subjetiva individual inevitavelmente metafísica, o outro (Flusser) nos fala de um mundo construído como rede de dados que geram informação nova pela deliberação humana e positiviza a sociedade das imagens sintéticas, na qual a paisagem pode ser comparada a figura de mapas sobre os quais conectamos pontos que nada mais representam além de pontos.

O pedido de Simmel é por uma retomada da relação, com as coisas no mundo, que seja desgarrada de determinações prévias, de formulações que pressupõem um resultado. Esta seria a crítica ao modo cientificista de geração de conhecimento, pois este independeria da experiência direta. Através do uso do cálculo e da técnica moderna para modificar e dar sentido ao mundo, o homem comporia o significado das coisas sem considerar o fenômeno (uma manifestação do “em si”, da coisa no mundo para a consciência).

Flusser, por sua vez, admite o domínio do cálculo e propõe que o modo de relação com o mundo estabelecido pela técnica moderna deva ser encarado como novo, mas não combatido. Assumir o modo de revelação dos sentidos das coisas através de representações vazias, provindas da pura formulação, e aprender a jogar com esses dados para deliberar informações novas seria tomar o papel de livres criadores.

Recompor a relação temporal com a paisagem, através do jogo com as imagens técnicas, e margear sua condição de representações de si mesmas (simulacros), é uma das possibilidades apresentadas pela estratégia da câmara escura na Arte atual. O cubano Abelardo Morell tem trabalhado a estratégia da câmera escura para estruturar situações paisagísticas desde a década de 1990, ainda como estudante do Massachusetts College of Art.

A partir de sua residência na Civitella Ranieri Foudation, em Umbertide (Itália, 2000), Morell tem relacionado a experiência da projeção da câmara escura com o espaço que é habitado pelo sujeito diante da paisagem, especificamente quartos de hotéis. Ao integrar a imagem resultante da técnica da câmara escura com os objetos e imagens presentes nos quartos dos hotéis, Morell intensifica a exigência presencial e pessoal para o contato com aquela imagem.

Morell

Figura 1. Abelardo Morell, “Camera Obscura: The Philadelphia Museum of Art East Entrance in Gallery #171 with a DeCherico Painting”, 2005. Fonte: http://www.abelardomorell.net/

Torna-se evidente, ainda que o indivíduo não esteja inserido na paisagem a qual esteja capacitado para reconhecer, que tal paisagem passa a lhe pertencer como representação efêmera e presencial, assim como, temporalmente, aquele indivíduo é circunscrito pelo quarto de hotel. Diante de uma projeção de câmara escura, a paisagem mostra-se como o recorte que é, determinado por nossa capacidade de conjugar os elementos da imagem invertida para o espaço no qual nos encontramos inseridos.

Objetivamente, a imagem-reflexo da paisagem, utilizada na estratégia da câmara escura, pode mesmo ser um “falso”, tratar-se de uma projeção de uma pintura ou uma fotografia de outra época. Nos interessa, aqui, a relação entre o quarto, que faz a vez de caixa-preta, e o reconhecimento da imagem invertida como uma paisagem possível de ser encontrada no mundo externo. É esse diálogo entre paisagens de natureza, distinta, que encontramos na intervenção feita no Philadelphia Museum of Art, em 2005 (Figura 1). Nessa intervenção, Morell integra ao espaço uma pintura de De Chirico com a projeção de câmara escura, ambas apresentadas como paisagens realizadas pelo homem, mas nas quais este estaria ausente. Nesse caso, a caixa-preta é o mesmo que o cubo branco.[4]

De modo distinto trabalha iraniana Nilu Izadi, para quem a paisagem não necessariamente aparece como captação. Enquanto Morell produz verdadeiras fotografias resultantes do processo longo de projeção da câmara escura (média de oito horas), Izadi propõe uma experiência presencial e finita, a qual faz da paisagem projetada uma forma que se esvai, se enfraquece e se fortalece com o correr das horas. Izadi constrói a estrutura de suas câmaras escuras especificamente para a paisagem que deseja estudar. A proposta da artista se aproxima mais de um reestabelecimento de laços pessoais, vivenciais com a representação das paisagens escolhidas, que trata o espaço de projeção como local de exibição da paisagem que “passa”, que desvanece.

Nessas câmaras escuras a paisagem aparece na dependência de três fatores: (i) da disposição subjetiva e capacidade de conjugação de informações do sujeito que presencia a projeção, (ii) das características do ambiente escolhido para ser “transformado” em paisagem e (iii) dos possíveis recortes a serem feitos pela localização da câmara de Izadi. O ambiente do deserto (Western Sahara, 2006. Figura 2) poderá ser transformado em paisagem com recortes diferentes de uma floresta (Nagaon Beach, 2000. Figuras 3 e 4), ou do espaço urbano (Kingston Tower, 2007).[5] Os recortes possíveis serão de domínio da câmara escura construída (para onde estará voltada e qual a extensão de sua projeção?). Mas, a possibilidade de estabelecimento de laços com a imagem apresentada pela câmara escura, no caso de Izadi, estará sob as condições de assimilação do sujeito presente na caixa-preta e da qualidade da luminosidade no momento da apreciação.

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Figura 2. Nilu Izadi, “Western Sahara”, 2006. Câmara escura montada no deserto da Argélia com tendas de tecido de algodão. Fonte: http://nilufar.co.uk/

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Figura 3. Nilu Izadi, “Nagaon Beach”, 2000. Câmara escura montada com caixa de madeira próximo ao Mar da Arábia. Fonte: http://nilufar.co.uk/

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Figura 4. Nilu Izadi, “Nagaon Beach”, 2000. Câmara escura montada com caixa de madeira próximo ao Mar da Arábia. Fonte: http://nilufar.co.uk/

Izadi utiliza a câmara escura não como aparelho que artificializa a paisagem, mas como estratégia de presentificação. Essa estratégia, principalmente quando não há o registro fotográfico, ressalta a transitoriedade da paisagem, sua condição subjetiva e suas ligações histórico-sociais. Tais possibilidades do trabalho podem ser verificadas na intervenção com câmara escura realizada na Yellow House, em Beirute, em 2010 (Figura 5). Nesse caso, a paisagem projetada da cidade é apresentada com as memórias da guerra Iran-Iraque (1982), quando se forma a imagem sobre as paredes da residência de 1924 que guarda as marcas do tempo e do conflito.

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Figura 5. Nilu Izadi, “Yellow House”, 2010. Câmara escura dentro de residência em Beirute. Fonte: http://nilufar.co.uk/

A experiência com a câmara escura é exclusivamente temporal. Apesar de tratar-se de uma estrutura similar a de captação fotográfica, no caso da câmara escura, não há a necessidade do registro da imagem projetada, ou, minimamente, é dispensável essa pretensão. Os objetivos dos trabalhos de Morell e Izadi são distintos, não exatamente opostos, mas ambos jogam, intencionalmente ou não, com tecnoimagens.

As câmaras escuras de Morell são propositalmente registradas em fotografias tecnicamente impecáveis. Já os resultados das instalações de Izadi são divulgados, estudados e referenciados através de imagens técnicas. Mais profundamente, ambos os trabalhos reivindicam uma posição crítica e “de margem” com relação à fotografia. Em todo caso, eles dependem naturalmente da existência dessas imagens para serem compreendidas como modo de estabelecimento de algum conhecimento sensorial do mundo. Nessas câmaras escuras, as imagens técnicas estão mais presentes do que em sua pura apresentação. Se as imagens técnicas e sintéticas representam sua própria natureza de imagem, na estratégia da câmara escura em obras atuais, a natureza das tecnoimagens é evidenciada sem que haja a presença destas.

Essas obras não tratam necessariamente com fotografias, embora seja inevitável recorrer ao entendimento do que seja fotografia para estudá-las. Há, em fotografias, uma impossibilidade de se apreender a maior qualidade dessas obras, que é mesmo a vivência desprendida do registro. Essa vivência exige um entrelaçamento fenomenológico com a composição que se decide instituir como paisagem. É possível, na intersecção dessas duas condições, registro fotográfico e câmara escura, entrever uma possível síntese das críticas de Simmel e de Flusser (experiência com o fenômeno e conhecimento pela técnica).

Conclusões

A determinação da paisagem através do estado de espírito de stimmung clama por um olhar sobre o mundo que venha desgarrado de preceitos calculáveis e calculados. Porém, o olhar para o mundo sob o domínio das imagens técnicas possui já um recorte determinado por programas e aparelhos, dos quais somos integrantes. A estratégia da câmara escura, retomada no momento em que todas as experiências parecem ser memorizadas tecnicamente, surge como um contraponto temporal que diz: o sujeito sempre é um externo à paisagem que pode inventar, assim como é externo à imagem que procura fazer das coisas reais.

Quando a unidade da existência natural se esforça, como acontece diante da paisagem, por nos enredar em si, revela-se como duplamente errônea a cisão entre um eu que vê e um eu que sente. Como seres humanos integrais, estamos perante a paisagem, natural ou artística, e o ato que para nós a suscita é, de forma imediata, contemplativo e afetivo, que só na reflexão ulterior se cinde nestas particularidades. (SIMMEL, 2009, p. 17).

A subversão das tecnoimagens, da qual a sociedade telemática é dependente, realizada pelas estratégias poéticas de Abelardo Morell e Nilu Izadi, constroem uma ponte entre duas vias de pensamento sobre as relações de Natureza e Cultura aparentemente não conciliáveis. Através do pensamento de Simmel, compreendemos que a paisagem não se faz apenas no embate entre um mundo natural e um mundo artificial, mas na subjetivação dos sujeitos que observam. Nesse sentido, a paisagem surge como experiência e é constituída não apenas pelos elementos formais percebidos e encaixáveis como peças. O conjunto que forma uma paisagem possui elementos próprios do estado de espírito, da memória, do corpo, do lugar em que tal paisagem está inscrita e do meio utilizado para permitir sua observação.

Ao pensarmos na relevância do meio, o pensamento de Vilem Flusser não deixa escapar as extensas mudanças efetivadas em nosso modo de perceber e deliberar sobre o mundo com o advento dos aparelhos, em especial aqueles que produzem artificialidade através da imagem. O que as tecnimagens realizam não seria um distanciamento do mundo natural, mas sim a possibilidade de construção de um mundo de outra ordem. A imaterialidade e a impermanência das “imagens sintéticas” exigem um sujeito capaz de deliberar sobre dados inscritos numa programação. A experiência criativa flusseriana é um ato de deliberação que pode ser simbolizado pelo poder de apontar, de apertar botões.

Em Abelardo Morell e Nilu Izadi, o caminho rumo ao zerodimensional flusseriano se desvia para a experiência temporal subjetiva de Georg Simmel. A paisagem, como construção transitória, tem sua polissemia ressaltada nos aspectos presenciais da experiência individual com a câmara escura e seus atributos histórico-sociais evidenciados pelos significados coletivos expostos por seus elementos formais. As tecnoimagens, subvertidas como estratégia poética, em Morell e Izadi, promovem mais do que um retorno a entendimentos tradicionais de paisagem e fotografia, mas saídas para experiências significativas com mundos os quais transformamos e habitamos.

Referências:

COELHO, Letícia Castíllio. A Paisagem na Fotografia: os rastros da memória nas imagens. GPIT (Grupo de Pesquisa Identidade e Território), Porto Alegre: UFRGS, 2011. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/gpit/wp-content/uploads/2011/03/castilhos-leticia-a-paisagem-na-fotografia.pdf> Acesso em: 10 de out. 2019.

FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

_______Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

HIPÓLITO, Rodrigo. O Mal da Imagem (?) e as estratégias de apropriação em

“Mouchette.org”. Orientador: Angela Maria Grando Bezerra. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Artes, 2015. Disponível em: <http://repositorio.ufes.br/handle/10/2131>. Acesso em 29 out. 2019.

O’DOHERTY, Brian; MCEVILLEY, Thomas. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SIMMEL, Georg. A Filosofia da Paisagem. Covilhã: Universidade da Beira Interior/LusoSofia Press, 2009.

TIBURI, M.. A Máquina de mundo: uma análise do conceito de aparelho em Vilém Flusser. Revista Ghrebh, Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia. São Paulo, março/2008 n. 11, pp. 120-146. Disponível em: <https://www.cisc.org.br/portal/jdownloads/Ghrebh/Ghrebh-%2011/09_tiburi.pdf>. Acesso em: 07 out. 2019.

[1] O texto “A Filosofia da paisagem”, de Georg Simmel, data de 1913, e é considerado uma das primeiras reflexões sobre paisagem num sentido mais extenso que o da representação pictórica.

[2] Para uma discussão mais detalhada a respeito da extensão da proposta de História da cultura de Vilem Flusser e do profundo papel das tecnoimagens nessa proposta, conferir HIPÓLITO, 2015.

[3] Nota a respeito de projeto de pesquisa, excluída para evitar conflito na análise cega do trabalho.

[4] Sobre as transformações formais dos espaços expositivos especializados em Arte, ocorridas entre os anos 1950 e 1970, coferir O’DOHERTY; MCEVILLEY, 2002.

[5] A variedade de projetos e estudos de paisagens realizada por cada um dos artistas pode ser encontrada, embora não relacionada, nos sítios: Nilu Izadi em: <http://nilufar.co.uk/> e Abelardo Morell em: <http://www.abelardomorell.net/>.

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