[texto de processo] Derrubar a parede e chamar pelo nome

Imagem de capa. Figura-fundo. Matisse. A dança.

Imagem de capa. Basileu Gomes Menezes, Fotograma criado a partir da obra A Dança, de Henri Matisse, 2009. Imagem em negativo da pintura de Matisse.

Texto de Rodrigo Hipólito

Uma das discussões mais longas e recorrentes no desenho e na pintura diz respeito às relações entre fundo e figura. Se você escorregar para esse limbo de dúvidas, corre um sério risco de se interessar por semiótica.

A semiótica é um tipo de droga muito consumido por filósofes da comunicação. Em baixa quantidade, essa substância é capaz de causar a ilusão de que chão, paredes e objetos são sólidos, individuais e capazes de responder, quando chamados pelo nome.

Outro dia, Fabiana se perguntou sobre o que acontece quando objetos começam a atender por nomes pelos quais não são conhecidos. Esse é o tipo de raciocínio que faz com que você caminhe nas bordas de um poço sem fundo (mentira, não sei se não há um fundo).

Isso me lembrou de uma anotação de mais de uma década atrás.

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Fundo-Figura, Paisagem-Abstração

Parece difícil, mesmo impróprio do pensamento, conceber eidos sem physis. É certo que reconhecemos uma figura com relação à uma não-figura, seu fundo. Mas, quando assistimos um fundo com a certeza sólida de que se trata de um fundo, tal categorização não enquadraria esse fundo. E um fundo enquadrado, assim como uma pintura abstrata emoldurada, não passaria a ser uma figura, do mesmo modo que o quadro abstrato com relação a parede? Ainda assim, no caso do quadro, há a parede como “novo” fundo para a “nova” figura.

Na expansão desse raciocínio, ao pensarmos todo o Fundo e toda a Figura, qual seria o fundo “novo” do fundo tornado figura, no momento em que chamamos o fundo de fundo e lhe outorgamos a condição de figura? Poderíamos aceitar uma situação eternamente circular, em que continuamente o fundo torna-se figura e a figura torna-se fundo. Algo tão contínuo que nem mesmo se encaixaria no tempo.

Sob esse ponto de vista o fundo sempre seria a figura e a figura sempre seria fundo. Mas, sempre ser mudança é o mesmo que nunca ser reconhecível. Assim, nesse contínuo circular, haveria a negação da existência reconhecível da figura e do fundo. O fato é que reconhecemos uma figura e reconhecemos um fundo. Temos, então, a mesma pergunta, é possível uma figura sem um fundo e um fundo sem uma figura?

Me lembro de termos pensado coisas parecidas quando discutíamos o sentido de paisagem.

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A dança. Matisse.

À esquerda, versão da pintura A Dança, de Matisse, de 1909. À direta, outra versão da mesma pintura, de 1910. A primeira foi feita com cores menos intensas, as pessoas estão nuas e de mãos dadas, duas delas de costas para quem observa, duas delas de frente e uma, à direta, está de lado. O fundo também é composto por duas cores menos intensas. Na segunda versão, além das cores serem mais intensas, os corpos são avermelhados e marcados com traços mais fortes, também avermelhados.

Onde isso foi parar?

Não tenho certeza de como essa anotação continuou. Sei que isso estava anotado em um dos muitos cadernos de notas. Eu poderia vasculhar os cadernos e descobrir para onde essas ideias caminharam.

Felizmente, a preguiça e o receio de retornar por uma via tão perigosa são mais fortes que a curiosidade.

Depois de anos discutindo ponto, linha, traço, plano, cor, expressão, composição, figura, fundo, perspectivas, cortes, montagem, superposições, molduras, bases, conjuntos, traços, texturas e por aí vai, ficaram algumas marcas. Eu não preciso recorrer aos cadernos manuscritos para saber que uma dessas marcas foi consequência daquelas reflexões.

As transições entre figura/fundo paisagem/abstração, deram base para que eu aprendesse a construir e a descrever cenários, em textos literários. Quando penso nas ações de uma personagem, o ambiente as atravessa, o cenário não aceita ser apenas fundo. Quando penso em paisagens, as perspectivas interna e externa se retroalimentam, de um modo que faz com que aquele conjunto de elementos relacionados pareça mais palpável.

Quando penso em um objeto, não me esqueço de que os seus significados dependerão da casa que ele habita. Do mesmo modo, a casa precisa ser habitada pelas pessoas e objetos. Do contrário, aquela será uma casa-cenário. Derrube as paredes e descobrirá um estúdio de gravação. Tudo falso demais.

Note que, derrubar as paredes de um cenário é algo que só tem graça quando há o estúdio, ou o resto do mundo, do outro lado.

Ainda com relação ao objeto, o modo como ele habita a casa, ou o mundo, não está desligado do nome que ele recebe. O esforço de pensar a palavra pela qual chamamos um dado elemento é, muitas vezes, a solução para que aquela coisa ganhe um pequeno sopro de vida.

Eita! A beira do abismo da semiótica!

Dois passos pra trás. Questão de segurança.

Ufa! Uma porta.

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