[Texto de processo] Imagem física e imagem metafísica

Texto de Rodrigo Hipólito

Esse foi um dos muitos textos que ficaram de fora da versão final da minha dissertação de mestrado, “O mal da imagem (?) e as estratégias de apropriação em Mouchette.org”. [1] Se voltasse para editar esse material, certamente, encontraria o ponto onde ele poderia ser inserido. Mas, ao reler, compreendo os motivos pelos quais o deixei de fora. Trata-se de uma reflexão ampla, não necessariamente voltada para objeto de estudos que elegi para aquela pesquisa.

Ao reler esse texto, percebi algo que gosto em minha escrita de pesquisa de não-ficção: os começos são simples, com a apresentação de ideias bem aceitas e das quais parece difícil retirar algo mais complexo. Mas, o texto abre-se de modo a pôr essas ideias de volta no jogo do debate. Isso faz com que necessitemos de novas referências, sem abandonar a compreensão e os sentidos estabelecidos sobre os primeiros termos apresentados.

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Martine Neddan. Mouchette.org. Página inicial.

NEDDAN, Martine. “Mouchette.org”, 1996-. [página inicial]. Fotografia de pétala de uma flor em grande aproximação, com gotas de orvalho sobre a superfície em tons de rosa claro e branco e moscas em preto e branco pixeladas e nitidamente não pertencentes à fotografia da flor. No canto superior esquerdo, há um menu com os seguintes itens: 1. My name is Mouchette. 2 live in Amsterdam. 3 am nearly 13 years old. 4. am an artist. 5. May I invite you? 6. Le site existe aussi en Français. 7. My next mood is… (reload). Ao lado esquerdo do menu, há uma fotografia quadrada de uma adolescente branca de cabelos pretos olhando para baixo.

Sartre uma vez declarou que “toda a técnica sempre implica uma metafísica”. Parafraseando Sartre, J. Curtis afirmou que ‘toda a imagem sempre implica uma física. [2]

Em “Os três paradigmas da Imagem”, Lúcia Santaella concebe uma divisão materialista da concepção de imagem: pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico. O pré-fotográfico caracteriza-se pela produção artesanal, manual e, consequentemente, pelo fato de as imagens pré-fotográficas estarem em um suporte manejável, serem únicas e auráticas. Esse último ponto diz respeito a sua condição (inevitável) de objetos contempláveis, pois colocam-se à parte, isto é, pautam-se pela oposição sujeito/objeto.

O fotográfico se dá com a inauguração dos procedimentos de produção automática das imagens, ou seja, da possibilidade de re-produção. A imagem fotográfica é concebida maquinalmente. Como já explicitado por Vilém Flusser, em “A filosofia da caixa preta”,[3] a possibilidade de produção de uma imagem fotográfica se encontra prescrita na máquina e tal objetividade é que permite sua reprodução. Nesse caso, o suporte não é desvinculado da dita “máquina”, pois tem-se como suporte o próprio processo químico ou eletromagnético através do qual a imagem é fixada em qualquer superfície.

Já na concepção de imagem pós-fotográfica, encontramos as “imagens digitais”, derivadas de matrizes numéricas. Essas são as imagens que Flusser denomina como sintéticas[4] e que, de certo modo, englobam as imagens técnicas. Por contar com processos matemáticos de geração da imagem, o pós-fotográfico permite a virtualidade e a simulação e, assim, escapa das amarras do mimético, presente nos dois momentos anteriores. Isso significa que a imagem digital pode ser gerada por uma programação e não apenas através da captação.

Tendo em vista a separação feita por Santaella, entendemos evolutivamente o comportamento da imagem, a partir de seus modos de produção. É justo salientar que essa divisão não se atenta, fundamentalmente, para a própria constituição da imagem. Nos três momentos separados pela autora (pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico), modifica-se materialmente o objeto designado como imagem.

Pensemos, então, o modo como se dá a imagem, a partir da nossa epígrafe, que é uma colocação da própria Santaella. Trataremos da entidade da imagem, especificamente, do modo como essa é produzida e apreendida. Qual é a delimitação que permite a produção de algo tido como imagem e onde insere-se tal delimitação para que possa haver apreensão?

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Se temos limites em um plano, isto é, uma área definida em uma bi dimensão; se sabemos os pontos que simbolizam essa delimitação, podemos, logicamente, dividir essa área em outras áreas, que serão, então, subdivisões da primeira área dada e, assim como essa primeira área, também serão bidimensionais. Poderíamos, logo, subdividir a primeira área de maneira indeterminada, ou seja, sem um limite numérico.

A capacidade de divisão seria, inicialmente, infinita. Tal subdivisão forma a delimitação de novas áreas, menores. Essas áreas menores podem ser entendidas como elementos, como componentes, da primeira área dada. Quanto maior a quantidade de elementos a que se chega, menor a área de cada um, tendo em vista que a primeira área dada não se modifica.

Consideremos uma imagem como o plano dado e aceitemos a imagem em sua apresentação retiniana. A respeito do plano, falamos em “elementos do plano”. A respeito da imagem, falamos em “elementos da imagem”, ou pixels (picture elements). Entende-se, então, que uma maior quantidade de elementos, uma maior quantidade de pixels, traria “refinamento” óptico para imagem. Quando se diz refinamento óptico, é inevitável a referência direta à imagem digital, composta pela atribuição de números para cada pixel, para cada elemento da imagem, para cada elemento do plano capitado, a partir de suas crominância e luminância.

Posto que: tanto a imagem analógica quanto a imagem digital necessitam da iluminação para sua concepção, mesmo que discutíssemos a imagem analógica e monocromática, o sentido de refinamento óptico se mantém, isto é, a composição de uma imagem com a maior quantidade de elementos identificáveis dá maior definição à própria imagem. Retira-se daí que uma imagem pode ser opticamente bem definida ou opticamente mal definida.

No entanto, essa chamada “definição” depende de outro fator, que referencia nossa epígrafe: a definição da imagem depende da “condição” de acesso ao conjunto. Uma área pode ser infinitamente dividida em áreas menores, mas, a condição de apreensão e, por conseguinte, a definição de cada elemento, depende do referencial do qual é tomado esse elemento. Se não há um referencial, não há condição de acesso e não há definição. Diretamente para a imagem, a definição óptica, ou seja, a divisão em um maior número de elementos (pixels), é infinita. Mas, sempre é limitada pela condição de acesso. Tal condição de acesso se dá através da relação de um elemento com outro e através da possibilidade de divisão de cada elemento. Em outras palavras, a apreensão de uma imagem depende da sua definição e a definição de uma imagem depende da condição de acesso aos elementos que a compõem, da relação deste elemento com seus pares conjunturais (heteroreferencialidade) e das possibilidades de definição do próprio elemento (homoreferencialidade), sua divisibilidade. Tem-se, então, que a condição limita a definição.

Ainda, o fato de ser a imagem algo condicionado não se trata de um fechamento, pelo contrário, pois coloca a imagem na condição de ser um elemento. A delimitação de uma área em um plano pressupõe que o plano não se fecha na delimitação, logo, indica uma área que contém a área (o alheio, ou seja, tudo o que se exclui na definição). A imagem entra, assim, nos domínios da metafísica, quando passamos a considerar o alheio aos elementos dados como parte da sua condição; ou seja, quando se tem em vista este alheio, a condição passa a ser tomada como “condição de existência” e não mais como “condição de acesso”.

Nesse sentido, apreender uma imagem passa a ser uma atividade transdutiva. Transdução

denota um processo […] no qual uma atividade gradualmente coloca-se em movimento, propagando-se em uma área dada, sobre a qual opera. Cada região […] serve para constituir a próxima de tal maneira que no momento mesmo em que essa estruturação se efetua há uma modificação progressiva ocorrendo em conjunto com ela. […] O processo transdutivo é, assim, uma individuação em progresso. […] O termos finais aos quais o processo transdutivo finalmente chega não pré-existem ao processo. [5]

[1] HIPÓLITO, Rodrigo. O Mal da Imagem (?) e as Estratégias de Apropriação em “Mouchette.org”. Dissertação de mestrado. Orientação: Angela Maria Grando Bezerra. Vitória, ES: PPGA/UFES, 2015.

[2] SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Os três paradigmas da imagem. In: ___. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 159.

[3] FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

[4] FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

[5] SIMONDON, Gilbert. The Genesis of the Individual. In: BRAGA, Paula (org.). Fios Soltos. São Paulo: Perspectiva, 2008, pp. 113-114, nota 8. Citação original completa: “This term denotes a process – be it physical, biological, mental, or social – in which an activity gradually sets itself in motion, propagating within a given area, through a structuration of the different zones of the area over which it operates. Each region of the structure that is constituted in this way then serves to constitute the next one to such an extent that at the very time this structuration is effected there is a progressive modification taking place in tandem with it. The simplest image of the transductive process is furnished if one thinks of a crystal, beginning as a tiny seed, which grows and extends itself in all direct ions in its mother-water. Each layer of molecules that has already been constituted serves as the structuring basis for the layer that is being formed next, and the result is an amplifying reticular structure. The transductive process is thus an individuation in progress. Physically, it might be said to occur at its simplest in the form of a progressive iteration; however, in the case of more complex domains, such as those of living metastability or psychic problematics, it might progress at a constantly variable rate and expand in a heterogeneous area. Transduction occurs when there is activity, both structural and functional, which begins at a center of the being and extends itself in various directions from this center, as if multiple dimensions of the being were expanding around this central point. It is the correlative appearance of dimensions and structures in a being in a state of preindividual tension, which is to say, in a being that is more than a unity and more than an identity, and which has not yet passed out of step with itself into other multiple dimensions. The ultimate terms at which the transductive process finally arrives do not preexist this process”.

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