Os círculos de terra pelo chão, a terra que sustenta a madeira morta de um proto-bonsai, o som dos instrumentos tocados num ritmo quebrado e vacilante, a junção evidente dos cacos de um pote de porcelana Esses objetos, os quais guardam os ciclos de vida e significado adquiridos com sua passagem, seu deslocamento, sua construção, compõe a contraparte formal da exposição Wabi-Sabi, de André Arçari.
Com um título intraduzível, que remete a uma vasta visão estética japonesa, Arçari nos indica a importância do ideário Taoísta para o avanço do seu processo de pesquisa em arte. Em uma espécie de fluxo centrípeto esse “orientalismo” não assume denotações, mas sim constrói uma capa ordenadora que permite ao próprio artista materializar e estabilizar fenômenos que lhe são fugidios e talvez impossíveis de apresentar.
No último ano, Arçari tem vivenciado a inquietude e as dúvidas de passear por um caminho difuso e enervante no qual os materiais e as técnicas parecem não encontrar jamais a estrutura adequada para sua amostragem. Pensar e repensar diversas vezes os temas a serem expostos, redesenhar continuamente a expografia de peças ainda indefinidas, criar grupos e séries para novamente separá-los e deixá-los solitários, são sintomas de uma necessidade de teorização que jamais abandona sua produção plástica.
Se, por um lado, dependemos de um esforço de decodificação para acessar as construções de Arçari e isso as recobre com uma capa conceitualista, por outro, o código da mensagem parece tornar-se mais íntimo e apontar para o que está objetivamente disponível na exposição. A escolha da estética wabi-sabi, por Arçari, talvez seja reflexo de uma via teatral em que o artifício não está no tratamento dos materiais, mas sim nos arranjos permitidos pelo conjunto de objetos que a natureza lhe trouxe.
Corramos o risco de pensar uma tradução, ou melhor, uma aproximação do sentido de wabi-sabi. Os dois termos que compõe a expressão são bastante próximos. O primeiro remete a um modo de vida tranquilo e harmônico, com a intenção de reconhecer uma beleza crua e assimétrica. Aqui o “desalinho” é uma palavra-chave, pois sublinha a aparência desse belo almejado. Na harmonia dos materiais, ou no tratamento simples e dócil com os objetos, atinge-se um estado de despojamento, de coisas encontradas “do modo como foram largadas”. Tal sensação não deve prescindir da certeza de que houve mudança, rearranjo e intervenção. O exemplo máximo que encontramos no trabalho de Arçari é o pote. O pequeno utensílio de porcelana deixa à mostra as rachaduras e também o procedimento de junção por cola e tinta entre seus cacos. Sua unicidade jamais será retomada e embora ele volte a ser reconhecido como um pote, a crueza e o desalinho dessa restituição lhe conferem adjetivos inseparáveis de sua nova condição objetual.
Já o segundo termo, sabi, refere-se a uma estética medieval que preza pelo uso de elementos que conotem solidão, velhice, obscuridade, rarefação e mesmo um de mortiço. Ainda assim, as composições incluídas na visão sabi são típicas do colorido e da intensidade da cultura popular do Período Tokugawa (1603-1868). Essa aparente contradição soluciona-se na injeção de um sentido de renovação cíclica naquilo que morre, passa, envelhece e se obscurece. Desse modo o colorido e o intenso harmonizam-se com o rarefeito e o mortiço.
O wabi-sabi seria, assim, uma estética que encontra beleza na organicidade natural, na crueza dos materiais e na condição “largada” e despojada dos objetos armados. Esse belo deve ser capaz de ativar a tranquilidade de apresentar uma elegância econômica que traga a materialidade para o primeiro plano. Ao assumir esse título para sua mostra e deixar que a crueza do orgânico permeasse seu processo de pesquisa, Arçari teve que parcialmente aceitar a casa em que está instalada a Galeria Virgínia Tamanini como mais um dos objetos encontrados pelo caminho. A partir desse ponto, os objetos, que antes seriam apenas trazidos para o interior do espaço expositivo e montados de um modo minimamente confortável, devem ser “plantados”, ou teatralmente integrados, a casa.
Com seus típicos períodos longos e versos inacabados, Arçari me fala dos círculos quase concêntricos usados por Merleau-Ponty como metáfora para a relação entre o sujeito e o objeto. Transposta para a estética wabi-sabi, essa ideia deve considerar uma aproximação ainda maior entre os elementos. Trata-se aqui de interdependência e impermeabilidade. Os objetos-sujeitos, designação que nos inclui, expandem-se em camadas e multiplicam círculos a volta de si mesmos até tocarem a expansão de outros objetos-sujeitos. Esse toque representa um limite relacional, mas também uma integração que faz de todas as coisas uma nova camada de algo maior. Podemos chamar essa composição maior de espaço-tempo, ambiente, senso coletivo, experiência imediata, o virtual e o possível, ou, como é para a cultura nipônica: 間.
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