[crônica] Os afetos que guardamos

O esconderijo, de Fabiana Pedroni, 2022. Montagem de imagem digital, no canto inferior esquerdo, o busto feminino de uma escultura clássica apoia a mão no queixo e olha para baixo. Na margem direita, uma ilustração gráfica de vidro estilhaçado abre um buraco negro na textura de solo que cobre o fundo de toda imagem.

Texto de Fabiana Pedroni.

As vasilhas me aguardavam na pia, e eu ainda estava enrolada pensando em formas de dobrar as sacolas, sem ser tão cuidadosa e demorada como aprendi com um ex-namorado, o mesmo que me ensinou a fazer flores com canudos de refrigerante. Sentia a raiva da pia, mas não podia fazer nada. A dobra aprendida criava pequenos triângulos delicados com as sacolas, muito mais bonitos que aqueles embolos mastigados feitos por minha mãe.

Na primeira leva de talheres lavados, lembrei-me de uma amiga me dizendo o quão absurdo era colocar os talheres com os cabos para baixo no escorredor. Um risco! As facas eu já colocava com os cabos para cima, pois tinha medo de cortar a mão quando voltasse a colocar novos talheres. Mas, medo de uma colher me furar? O fato é que, depois dessa conversa, todos os talheres foram invertidos no escorredor. Vinte e cinco anos subvertidos em uma conversa ordinária. Sempre que lavava as vasilhas e, sem querer, o impulso do corpo colocava um garfo com os dentes para cima, eu agradecia essa amiga mentalmente e o revirava. Senti-me segura com essa memória.

Em poucos minutos, pensei com carinho em duas pessoas importantes em minha vida, o que me levou a um tuíte, depois a um meme, depois a uma gargalhada solta de uma piada em um comentário num grupo.

Invisíveis, interagimos de forma platônica nas redes. Platônica como um amor não correspondido, porque não sabido. “Por que você me segue se nunca trocamos uma palavra sequer?” Essa frase, lembrada de um tuíte de uma pessoa que admiro, me pegou à paulada em minha passagem sorrateira.

De um papel de bala dos anos 2000, desembrulho um sabor envelhecido. Gosto do gosto gostoso de gostar de você — nunca essa frase de correio do amor de festa junina fez tanto sentido.

Quando parei de sentir o gosto de gostar de alguém para consumir a vida alheia como uma espectadora?

De frase em frase, do lado de cá da tela, descemos uma ladeira com risos, choro, emoção, sentimentos variados, mas todos solitários. Temos medo de demonstrar afetos mais singelos. Fomos educados a expressar afeto apenas para pessoas extremamente próximas e sufocamos pequenas interações que poderiam existir. Aos poucos, isso se torna uma desculpa.

— Seria estranho responder a esse tuíte, não seria?

— Nossa, ela foi no mesmo restaurante que eu gosto, que legal! Vou curtir. Quando for lá de novo, vou tirar uma foto e postar, talvez ela veja.

— Também estava pensando sobre isso hoje. Na verdade, hoje pensei muito em você, por causa de um comentário que li.

— Opa, alerta! Ele disse num tuíte que esse aplicativo pode ser malicioso.

E por aí vai, tantos pensamentos solitários presos numa relação unilateral proporcionada pela internet.

Do que temos medo? A autovigilância pode ser uma grande responsável por silenciar nossos afetos. Guardados, bem escondidos; fingimos que eles não existem e não são importantes para o nosso dia a dia. Pode ser uma impressão minha que exista pessoas em uma contracorrente de comentários e interações. Que, por algum motivo, receia interação.

Continuarei a pensar sobre esse tuíte por um bom tempo, porque ainda não compreendo muito bem por que guardamos tão bem escondidos os nossos afetos.

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