Texto de Rodrigo Hipólito
Originalmente publicado no catálogo da mostra individual de Jocimar Nalesso, na Galeria de Arte Espaço Universitário. Vitória ES: Espaço Universitário. Secretaria de Cultura da UFES, 2011.
O tempo e a memória incorporam-se numa só entidade; são como dois lados de uma medalha. (…) A memória, porém, é algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões através das quais ela nos afeta. A memória é um conceito espiritual. (TARKOVSKI, 1990, p. 64)
Numa conferência pronunciada em 20 de Abril de 1959, na Universidade da Califórnia, Santa Barbara (UCSB), Aldous Huxley (2016) fez uma breve explanação a respeito de alguns modos pelos quais o ser humano enxergou e enxerga o futuro, e mesmo o tempo. Seria de interesse geral pensar nas mudanças de ângulo ocorridas durante os mais de cinquenta anos que nos separam das palavras de Huxley, mas, isso somente ocorreria por um condenável salto sobre nossa carência de compreender mesmo o raso resumo feito por ele. Tentativas de compreender ou trabalhar sobre as dúvidas germinadas na nossa relação com o tempo, na nossa visão de futuro, que tanto se mistura com nossas visões do passado, nas brincadeiras da memória e nos receios de perdê-la por completo, são empresas audaciosas e previsivelmente frustrantes. Isso não será tentado aqui, direta ou indiretamente. Há, aqui, apenas o indicativo de uma dessas temerosas e louváveis empresas, que levam o aventureiro a constranger as palavras, ou a abandoná-las, e faz com que a audiência guarde quaisquer opiniões para depois do fim do feito.
Antes de indicarmos a aventura — ou desventura — e o aventureiro, tentemos alguns comparativos utilizados por Huxley para conversar a respeito da temporalidade e da vivência dessa temporalidade. Para essa conversa, o pensador utilizou conceitos indicados por forças culturais reconhecíveis: de um lado, o ocidente “cristão”, e, de outro, o oriente “hindu” (sem nenhum cerceamento infantil do âmbito religioso).
Pensemos, primeiramente, no tempo ocidental, linear, progressivo e impávido. Este tempo que aceitamos, por mais estranho que pareça, não é exatamente o tempo cristão, apesar do costume adquirido de relacionar a temporalidade do ocidental com a verdade do pessimismo divino cristão. Não são o mesmo tempo. Isso porque o tempo, como tempo, pouco ou nada teria de espiritual, e essas palavras (temporal e espiritual) são postas inclusive como antagônicas em diversos momentos. O tempo cristão é, no máximo, uma espera. A eternidade é o foco, é o que dá direção e sentido. E a eternidade não depende do tempo.
Outro ponto importante é que o tempo cristão, apesar de a doutrina cristã valorizar o aprendizado, a vivência e a tradição, não se preocupa com o acúmulo do tempo, com o fato de o tempo que passa não desaparecer, mas permanecer em nós como uma sobrecarga, caminhando para o transbordamento ou a explosão. Isso é irrelevante para o tempo como espera, pois o acerto é um corte final e a eternidade sobrepõem-se a qualquer ideia de acúmulo. Vivemos o acúmulo do passado e desesperadamente tentamos mantê-lo existente. O passado parece fugir, já que nos esforçamos para mantê-lo. É estranho que, nessa disputa, ninguém parece dar sinais de desistência e, mesmo diante do visível cansaço de ambas as partes, ninguém crê verdadeiramente vencer. Talvez o passado finja fugir de nosso atormentado braço salvador. É provável que jamais saibamos se isso é verdade.
O tempo hindu, apesar de pensar o acúmulo em sua estrutura cíclica que sempre atinge um momento crítico, quando é possível recomeçar após a explosão, não preza exatamente pelo tempo, pois se encerra na permanência e na repetição. Assim, o movimento e a ausência ficam tão próximos para a compreensão que é quase impossível espremer uma vida humana entre as duas ideias; ou, o presente torna-se tão extenso que a sua vivência torna irrelevante indagar sobre uma estrutura temporal na qual ele se encontra.
Ainda assim, o desejo de evadir-se de um retorno ao temporal, quando há grandes possibilidades de o futuro ser o presente ou o passado e ambos acorrentados ao retorno, esse desejo é tão grande que o mais comum é manter-se junto ao presente, na tentativa de atingir a plenitude, ou o eterno presente sem retorno. Em ambos os casos apontados, há o mesmo pedido: encerre-se o movimento para que a memória seja sempre familiar.

Sem título. Jocimar Nalesso, 2011. Tinta acrílica sobre tela. Com linhas fortes, retas, mas expressivas, o desenho de uma cadeira em preto e branco, vazia, ao centro, ladeada por dois pórticos de madeira, pintados de azul, sem portas. Através de cada pórtico, um cômodo que termina em outro pórtico, e outro e outro, como se o primeiro plano da pintura se repetisse em perspectiva.
Algo muito parecido acontece nalgumas obras de Jocimar Nalesso. Nessas obras, quase sempre, temos algo muito próximo da nossa relação com o tempo. A memória vivida e a não-vivida misturam-se num jogo de inversão promovido pelo esboço da perspectiva. E nos enquadramos nessa perspectiva. Como facilidade, podemos localizar o passado em nossa memória, como algo que não é nem será. Um pouco mais incomum é enquadrarmos o futuro como parte da memória.
Quando pensamos o futuro, tentamos dispor nosso presente para a ideia de passado, o que é impraticável de vivenciar. Desse modo, acabamos por fazer projeções paralelas às nossas memórias do passado. Temos, também, memórias do futuro. Para os ocidentais, esse futuro pode ser apontado adiante. Porém, quando estamos diante de série Memória no Vazio (2010) e apontamos para adiante, nós apontamos para o passado e o fazemos através de uma memória. Mais que isso, apontamos para uma memória que não é nossa.
E muito além da tinta empregada para constituir a imagem e os movimentos do pincel, essa memória para a qual podemos apontar, também não pertence ao artista. Apontamos para uma vivência impossível de reconstituir, mas que se recusa a despregar-se do presente, e o fazemos através de uma perspectiva do tempo, que é a obra de Nalesso.
As memórias do passado e do futuro encontram-se, em nós, quando percebemos nossa presença na perspectiva do tempo. Em O Direito de Sonhar, Gastón Bachelard nos fala “que o instante poético possui perspectiva metafísica” e talvez seja isso o que nos intriga nas obras de Nalesso. A respeito da indicação de Bachelard, Mirian de Carvalho explica:
Perspectivas metafísicas esclarecemos, porque as simultaneidades ordenadas são um instante do ser, do ser que se realiza, que emerge, e que detém na instantaneidade; por isso repetimos: o instante poético detém-se em fuga.
No instante poético há razão e paixão. Razão e paixão instantâneas. Razão e paixão dialetizadas. A poesia acolhe antíteses, antíteses dinamizadas a negar o tempo do mundo, a modificar o tempo da matéria. (CARVALHO, 2005)
Então, talvez devamos encarar tais obras de Nalesso como inseridas neste tempo poético singular; nesse tempo poético que Bachelard diz ser vertical e que pode nos colocar num espaço tempo transfigurado pela memória. Talvez, devamos entender o adiante da perspectiva dessas imagens como um acima ou um abaixo, ou ainda como uma sobreposição dessas posições, bem no plano da consciência vertical do espectador. Seriam, então, essas imagens azuladas de uma casa velha, totalmente pertinentes a estrutura de nossa memória verticalmente temporal.
Lugares em estado de abandono me fazem pensar na memória do lugar, no silêncio e na ausência. A arquitetura, apesar do silencio, o vazio revela marcas e formas instigantes ao estudo da minha proposta. (…) Então quando me refiro à pintura quero pensar nessas imagens, nesses registros de memórias, sejam conscientes ou não, mas nesses lugares e objetos. (NALESSO, inédito)
Bachelard insistiu, diversas vezes, em compor uma profunda metáfora da casa como “nosso primeiro universo”, “como nosso canto no mundo” (BACHELARD, 1974, p. 358). Nalesso torna essa metáfora em realidade bruta, vai do porão (das raízes úmidas de uma memória terrosa) ao sótão (das lembranças sempre solitárias e aéreas da infância). Habitar uma casa dessa maneira não é exatamente habitar-se como em devaneios metafóricos, mas inserir pregos numa memória universal capaz de atrair a tudo e a todos e assim a própria memória surge como habitante da casa.
Referências
BACHELARD, Gastón. A Poética do Espaço. Coleção Os Pensadores XXXVIII. 1º. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
CARVALHO, Mirian de. Ontologia e Estética: uma filosofia do tempo poético. Princípios, Natal, a. II, nº 3, Jul/Dez 2005, p. 147-153.
HUXLEY, Aldous. O futuro do Mundo. In: A situação Humana. Tradução de Lya Luft. 2 ed. São Paulo: Biblioteca azul., 2016.
NALESSO, Jocimar, escritos do artista, inédito.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 64.
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