Texto de Rodrigo Hipólito
Logo quando me mudei para o apartamento onde ainda moro, nasceu a filha da vizinha da janela da frente. Ela está preste a fazer cinco anos. É uma criança que passou boa parte de sua curta idade em isolamento social, durante o ápice da pandemia de COVID-19. Quando começou a observar o mundo, a pequena passava muitas horas do dia na janela, junto com a avó. Aos poucos, travou contato visual com crianças de outras janelas. As interações, com gritos e brinquedos erguidos eram brincadeiras sem a expectativa de qualquer outra aproximação. Hoje, de sua moldura, a vizinhazinha ainda me grita por tio e me mostra suas novas aquisições. Cadernos, lápis, mochila. Ela começou a frequentar a creche.
Imagino que esse tipo de relação entre vizinhos se tornou mais frequente nas cidades de muitos prédios. Nem devia ser algo tão raro, antes de 2020. Mas, esse ano evidenciou um tipo de relação de vizinhança que já me interessava muito antes.
É estranho dividir certa intimidade com tanta gente e sequer saber seus nomes, ou trocar meia dúzia de palavras com frequência, ou tomar um vinho antes de ouvir o ranger de suas camas. Essa aproximação limitada é uma intimidade reproduzida por convenções, mas nunca naturalizada por completo. Todas as vezes em que pipoca uma algazarra, a fofoca e a curiosidade incontida de pescoços esticados são sinais de que essas pessoas ainda são estranhas.
Nós mantemos uma distância artificial, mesmo quando já internalizamos a rotina de pequenas ações domésticas de cada apartamento. Reparei que paro para fumar nos mesmos momentos em que a vizinha do prédio ao lado sai e pega o isqueiro que fica estrategicamente escondido no parapeito da janela. A esposa e ela têm um acordo para não fumar dentro de casa, pois o boxer parece ter alergia a fumaça do cigarro. Nunca conversei com a fumante, nem brinquei com seu cachorro. Nunca estivemos a menos de 50 metros um do outro. Mas, já entendi algumas regras de seu casamento e nossos horários de fumar se tornaram os mesmos. Não sei quando isso aconteceu.
Eu poderia fazer observações similares com relação às pessoas que vivem em outros apartamentos a minha volta e este texto seria eterno. Uma afirmação dessas pode dar a entender que eu vivo com binóculos e microfones direcionais apontados para todos os lares do entorno. Mas, é outra coisa. Não sei se conseguiria fugir disso, pois nossas vidas estão próximas demais para que eu ignore seus desabafos, pesadelos, brigas, gargalhadas, visitas desejadas e indesejadas, cardápio do almoço e do jantar, solidão e cortes de cabelo.
Uma história que marcou minha infância é o conto “O lixo”, de Luís Fernando Veríssimo (O analista de Bagé. RJ: Objetiva. 2002). É um daqueles contos curtos, que sintetizam situações amplas e fenômenos do quotidiano que atravessam pessoas nas mais diversas cidades. O texto é feito, praticamente, só por diálogo. A senhora do 610 e o senhor do 612 “Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.” Não é surpreendente que um conheça, minimamente, o lixo do outro. Também não é estranho que eles sejam capazes de deduzir algumas informações a partir do lixo do vizinho. O que é estranho é que eles ainda não tivessem conversado e que a aproximação consciente só aconteça com a revelação do lixo.

Fundo em duas cores, amarelo na parte de cima e cian na parte de baixo. No encontro das duas cores, textura de pinceladas de tinta. Ao centro da imagem, uma forma abstrata que parece misturar uma figura humana vestida com uniforme industrial azul e vermelho e uma máquina com carcaça vermelha quebrada. Ao lado esquerdo dessa abstração, uma mancha vermelha que lembra sangue derramado. O vulto humano aparece em pinceladas bem marcadas. Já a carcaça da máquina, é mais naturalista, com sombra marcando um possível piso.
É provável que o modo como eu construo personagens tenha relação com essa e outras experiências de leitura da infância. Mais do que isso, essas leituras se misturaram com o modo como eu observo as pessoas a uma distância segura para não me tornar um invasor de privacidade. De repente, esse é um dos motivos de eu me sentir tão à vontade no Espírito Santo. Capixabas têm a fama de serem arredios ou, no mínimo, não tão calorosos. Mas, eu me habituei com a tranquilidade emocional de poder atravessar a rua para não cumprimentar uma pessoa conhecida sem que isso seja considerada uma grande gafe ou falta de educação. O Espírito Santo é um estado de território pequeno. Nossas cidades são pequenas. Todas as pessoas são conhecidas ou conhecidas de conhecidas. Nesse cenário, a escala da intimidade também muda. As pessoas próximas são só aquelas que estão grudadas.
O mundo, no Espírito Santo, é uma vizinhança estendida. Talvez, por isso, viver aqui tem me ajudado na construção de personagens. Em “A morte do vizinho da serra elétrica”, todas as personagens foram compostas de histórias de pessoas que conheço e conheci. Mas, não apenas isso. Em cada uma delas, há a mistura com a organização das minhas emoções e das emoções das pessoas mais próximas.
Apesar da história apresentar um foco na vida de um típico pequeno condomínio do bairro de Jardim da Penha, em Vitória, a vida das personagens não se reduz a isso. Elas foram parar naquele prédio depois de cambalearem em suas vidas. As personagens de “A morte do vizinho da serra elétrica” são tão capengas quanto o prédio onde terminaram. E ainda que o texto conte alguns dos motivos que fazem com que elas sejam assim, isso é apenas uma aproximação limitada, uma intimidade nunca naturalizada por completo. Escolher o que revelar sobre as personagens é uma das partes mais gostosas da escrita de ficção. De um jeito parecido, eu acredito que nós escolhemos o que a vizinhança pode saber e o que, para evitar confusão, é melhor manter em segredo.
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