Texto de Rodrigo Hipólito
MIÉVILLE, China. El Consejo de Hierro. Traducción: Manuel Matalvarez-Santullano. Ilustración de cubierta: Edward Miller. Madrid: La Factoría de Ideas, 2004.
“O Conselho de Ferro” é o terceiro e último volume da série de livros de China Miéville ambientada no estranho mundo de Bas-Lag. Esses livros me encantaram e ainda influenciam a minha escrita de ficção. Escrevi resenhas tanto para o primeiro livro, “Estação Perdido”, quanto para o segundo, “A Cicatriz”, embora os dois últimos ainda não tenham sido lançados em português, no momento em que finalizo este texto.
Nesse terceiro volume da série, nós retornamos para o continente da maior cidade de Bas-Lag, Nova Crobuzon. Mas, mais da metade da história não se passa nos domínios da cidade. Nós somos apresentados a outras regiões desse continente, com seus ecossistemas e geografias estarrecedoras.
O Conselho de Ferro, que dá nome ao livro, é um grupo revolucionário de viajantes e párias sociais que formaram uma comunidade autogovernada. Essa comunidade de prostitutas, refeitos, xenianos e trabalhadores braçais toma posse de uma grande locomotiva e dos próprios trilhos nos quais trabalhavam para um empresário megalomaníaco. Apontados como criminosos e perseguidos pela milícia de Nova Crobuzon, a comunidade intitula-se Conselho de Ferro e passa a retirar e reinstalar os trilhos do trem, em uma fuga que parece eterna.
O primeiro fim dessa perseguição se dá ao atravessarem a zona cacotópica, na qual a milícia perde seu rastro. Isso permite que o Conselho de Ferro se estabeleça e tenha estrutura para formar uma nova geração, nascida longe dos domínios de Nova Crobuzon.
A grande cidade nunca desistiu de procurar pelo Conselho de Ferro, assim como o seu relato mítico de liberdade nunca deixou de ser contato entre ativistas e populações exploradas. Enquanto alguns anseiam pela volta do Conselho e as autoridades se empenham para capturar e encerrar com seu mito, dois eventos distintos confluem para acelerar esse reencontro: uma guerra entre Nova Crobuzon e a quase desconhecida cidade-estado de Tesh; e a jornada de um ex-membro do Conselho de Ferro, Judah Low, que tinha abandonado o trem, anos antes.
Como nos outros dois volumes da série, “O Conselho de Ferro” explora temas de política revolucionária, o poder de contar e disseminar histórias e a relação entre memória e identidade. Com respeito a esse último ponto, Nova Crobuzon continua a ser o centro magnético de Bas-Lag. Mesmo quando passeamos por outras partes desse mundo, em “A Cicatriz”, a fuga e o retorno à Nova Crobuzon continuaram a empurrar e puxar as personagens. Isso não é muito diferente com a comunidade que se afasta e mesmo com a geração de trabalhadores criada distante da metrópole.
Ao empreender sua jornada de volta à Nova Crobuzon, o Conselho de Ferro tenta não apenas dar continuidade para a ânsia revolucionária que explodiu em um momento de extrema exploração, anos antes, como procura afirmar-se no resgate de suas raízes urbanas. Dois objetivos confluem e se misturam: a chegada do mito salvador, que libertará a população da cidade do julgo do governo e da milícia; e a esperança de impedir que Tesh transforme Nova Crobuzon em terra arrasada.
No estilo de escrita, Miéville mantém sua mistura de vários gêneros, notadamente fantasia, ficção científica e horror. Essa é a mistura que, tipicamente, é indicada para descrever o new weird, sobre o qual já comentei em resenhas anteriores. Mas, para além dessa concepção de gênero literário, “A Cicatriz” e “O Conselho de Ferro” evidenciam a escolha por narrar jornadas épicas, ainda que não heroicas. Nova Crobuzon e sua população são o imã em torno do qual gira o destino de toda a Bas-Lag. Em simultâneo, as longas travessias por outras terras nos mostram como há grandiosidade espalhada pelos mares e continentes; como há poderes muito mais extensos, densos e complexos do que aqueles exercidos em Nova Crobuzon.

Pintura de Edward Miller, assinado como Les Edwards. O Conselho de Ferro. Capa da edição Checa do romance, publicada pela Laser Books, em 2005. Toda feita em tons esfumaçados de azul escuro, laranja e branco, a pintura mostra uma locomotiva de frente, sobre os trilhos, em ambiente escuro, com a silhueta de pessoas à direita.
Certamente, cada livro da série se concentra em conflitos diferentes, ou conjuntos de conflitos, com diversos personagens, suas histórias pessoais e as histórias de seus povos e classes. “Estação Perdido” enfoca as lutas do povo de Nova Crobuzon contra seu próprio governo, a exploração desse povo, a percepção da teia social e a compressão da possibilidade de mudança do destino. No caso do destino, a história e a memória nos indicam obedecer a traços sociais, mas que esses traços não são fixos ou determinados. Ou seja, o destino sempre pode ser mudado.
Já em “A Cicatriz”, nós acompanhamos pessoas que fogem ou são retiradas de Nova Crobuzon para colonizarem Nova Esperium, do outro lado do oceano. Sequestradas por piratas, as personagens passam a viver na cidade flutuante de Armada, que funciona como uma sociedade não capitalista. Essa cidade não é desprovida de autoritarismo e de injustiças, ainda que sejam de naturezas bem distintas daquelas que conhecemos no livro anterior. Enquanto nos habituamos com padrões sobre os quais pouco pensamos do lado de cá das páginas, navegamos pelos mares e empatizamos com pessoas empurradas para as margens, sejam humanos ou não-humanos.
Em “O Conselho de Ferro”, a jornada da comunidade do trem e sua luta contra seus perseguidores pode ser observada em uma escala muito maior, pois o nosso círculo de percepção social foi expandido. Depois de compreendermos a teia social e como ela é tecida para muito além da cidade, com processos de colonização, exploração de recursos naturais e vários tipos de guerras e disputas, a centralidade da revolução fica evidente, assim como seus obstáculos externos e internos.
Nesse último livro, a estrutura do Conselho explicita a crítica à exploração do trabalho no sistema capitalista desde o início da história. O Conselho é formado por, principalmente, prostitutas, xenianos e refeitos, que são indivíduos transformados em criaturas monstruosas, com partes mecânicas ou mesclas corporais orgânicas absurdas. Esse procedimento é uma punição por seus crimes. Mas, além da punição, os refeitos são utilizados para trabalho escravo e empregos degradantes. Através da história de Judah Low, que aprende a controlar materiais e criar gólens com um povo originário e tido como primitivo, nós somos introduzidos nessa sequência de destruição que o domínio industrial ganancioso promove.
Ainda que não se mobilizem contra a destruição de ecossistemas e povos locais para a passagem da estrada de ferro, os trabalhadores da linha sofrem com as condições precárias e o trabalho incessante que os aliena de sua própria condição. Essa situação explode e muda com a liderança de uma prostituta, parceira de Judah Low, que retorna para a estrada de ferro depois de conhecer o ativismo e as liberdades da vida urbana de Nova Crobuzon.
Apesar de não saberem muito bem o que fazer após tomarem a locomotiva e a estrada de ferro, os trabalhadores e trabalhadoras revoltadas sabem o que não desejam. A jornada do Conselho representa uma rejeição da exploração, desde o questionamento aos papéis tradicionais atribuídos ao trabalho até a concordância de juntos criarem uma sociedade nova e mais igualitária.
De modo geral, a série Bas-Lag teve, e ainda tem, um impacto significativo na literatura especulativa, particularmente, nos gêneros de fantasia e ficção científica. Apesar de não ser novidade, o new weird deu um novo gás para a indefinição de gêneros. Mais do que responder à dúvida sobre se uma história se encaixaria em fantasia, ficção científica ou horror, essa influência nos faz partir do princípio da mistura e nos perguntarmos o que mais há no livro, ou mesmo como esse atravessamento entre fronteiras de gênero ocorre.
Ao dar esse passo, a maneira como encaramos a construção de mundos ficcionais também ganha. Para Miéville, não basta arrebanhar elementos típicos de cada um desses gêneros e ordená-los de acordo com os cânones que facilitam o trabalho da leitura e da análise. Os tipos de organização social, arquitetura, criaturas, comportamentos humanos, elementos insólitos e suas descrições podem ser tão desconfortáveis como qualquer descoberta de um novo mundo.
Ao tornar essa descoberta menos confortável, Miéville abre a porta da leitura para os inevitáveis debates políticos, que deveriam ser inevitáveis quando falamos sobre o mergulho em realidades sociais, ainda que ficcionais. Luta de classes, exploração do trabalho e resistência à opressão sempre estiveram presentes em obras de ficção científica e fantasia. É certo que, em muitos casos, o público pode passar desapercebido pelo sentido das analogias e alegorias de obras muito populares. Com a série Bas-lag, passar desapercebido pela crítica política não é uma possibilidade.
Esses mesmos elementos, algumas vezes, são utilizados por críticas negativas à essa trilogia. Embora a série Bas-Lag tenha recebido ampla aclamação da crítica, alguns comentários depreciativos apontam para a “complexidade da forma”. Ao elencar essa complexidade como elementos negativo, algumas vezes, as críticas apenas falam sobre o exagero de descrições de cenários e uso de frases rebuscadas. Mas, outras vezes, essa crítica resvala no preconceito de considerar que literatura especulativa deva sempre apresentar um texto de simples leitura ou de ritmo acelerado.
O ritmo lendo também é um ponto costumeiramente ressaltado como negativo. Essa crítica, em grande medida é um reflexo do preconceito acima indicado. Ironicamente, uma característica que costuma ser elogiada por leitores de fantasia, quando encontrada nessa trilogia, também gera desagrado: as descrições gráficas. Nesse caso, não me parece razoável, já que a maioria das descrições de cenários, cenas de ação e criaturas apresentadas na série, por mais detalhadas que sejam, passam longe de impedir a imaginação por parte de quem lê.
Para algumas dessas críticas, penso que o mais interessante seja nomear referências apropriadas para o diálogo com a forma e o conteúdo da trilogia Bas-Lag. O trabalho de Miéville, nesses três livros, já foi descrito como “steampunk gótico”, pois possui elementos da literatura gótica clássica, como cenários sombrios e atmosféricos e temas de morte e decadência, ao mesmo tempo em que explora o steampunk.
Mas, essa exploração do steampunk não se dá apenas pela reprodução de elementos já conhecidos. Há uma mistura do gótico e do steampunk com o surrealismo, o que estabelece um “clima” muito particular, principalmente para a cidade de Nova Crobuzon. Junte a isso as temáticas de decadência, a teoria marxista e o horror cósmico e temos uma receita com ingredientes de diversos origens.
Mas, o experimentalismo de Miéville, em seu desafio às convenções narrativas, pode ser relacionado (e provavelmente foi influenciado por) a James Joyce, Gene Wolfe, Samuel Beckett, Mervyn Laurence Peake, Jorge Luis Borges, Ursula K. Le Guin e os livros infanto juvenis “The Borrible Trilogy”.
Nada disso, no entanto, supera a experiência de leitura livre e aberta. É importante pensar e discutir sobre as histórias que lemos. Esses três livros são o caso de histórias que, quanto mais pensamos e conversamos sobre eles, mais crescem e alimentam nossos modos de ler outras narrativas.
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