TREMBLAY, Paul. O chalé no fim do mundo. Tradução: Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
Texto de Rodrigo Hipólito
Eric e Andrew são os pais de Wen, uma garotinha de quase 7 anos. Eles decidem passar as férias em um chalé afastado da cidade, o que sempre é uma ideia meio burra. Tudo corria bem, até que quatro estranhos com armas estranhas invadem a casa e os obrigam a fazer uma escolha muito difícil: defender a família e amar ao próximo como se não houvesse amanhã, ou destruir a família e corromper a pureza da infância para impedir o aquecimento global, o caos aéreo e o “vírus chinês”.
Essa é uma sinopse que deveria ser engraçada. Eu disse isso em um episódio do Perdidos na Estante, no qual analisamos esse livro. Muito do que eu inseri nesta resenha, você pode ouvir no podcast. O que acrescentei neste texto é fruto da gravação do episódio e da experiência de assistir Batem à porta, o filme adaptado do livro.
No cerne do êxtase e do pavor do fim do mundo, está a semente de todas as religiões organizadas
Eu li esse livro pouco depois do seu lançamento em português e gostei muito da história e do modo como foi contada. Não posso dizer a mesma coisa do filme. Imagino que muita gente que assistiu ao filme de Shyamalan e tenham percebido os sérios problemas do tratamento que o diretor deu para essa história, não se interessará em ler o livro. No sentido oposto, pessoas que tenham gostado do filme, não encontrarão o que procuram no livro. Eu digo isso porque Batem à porta modificou pastes da história que alteram sua mensagem até, talvez, a inversão de significado. Ou seja, se você não gostou do filme, é provável que goste do livro. Feito esse pequeno aviso, voltemos para a história e as personagens de O chalé no fim do mundo.
Como uma típica história de tensão, O chalé no fim do mundo fecha algumas poucas personagens em um local e as força a entrarem em conflito. Qualquer desculpa pode ser utilizada para isso e tende a funcionar, ao menos quando a pessoa autora é capaz de desenvolver boas personagens e organizar suas ações de modo a deixá-las sempre no limite das emoções. Construir boas personagens, cabe dizer, não é apenas dar um passado, uma personalidade e uma profusão de detalhes que podem ou não ser percebidos por quem lê. As personagens devem ter profundidade e desenvolvimento adequados para seus papéis na história.
Em O chalé no fim do mundo, as três personagens centrais são as únicas das quais conhecemos, com confiança, o passado, as emoções, as reações íntimas e o progresso emocional durante o suceder dos fatos. Em outras palavras, esse é o ponto de vista escolhido para contar a história.
Ao escolher o ponto de vista de Wen, Eric e Andrew, o autor faz com que nos identifiquemos com essas personagens. No sentido oposto, as pessoas que invadem o chalé continuarão a ser estranhas até o final do livro. Nós não as conhecemos além do que elas nos dizem. Caso o autor escolhesse contar a história sob o ponto de vista de Leonard, por exemplo, a família se tornaria apenas um conjunto de objetos que esperaríamos serem manipulados para descobrirmos se ele atingiria ou não seus objetivos.

Capa do livro O chalé no fim do mundo. O título aparece à esquerda, com as letras em azul manchado de preto. À esquerda, ilustração linear em tons de marrom e preto, com chalé rústico, como se estivesse suspenso no ar, com a silhueta de árvores acima do telhado e, em espelhamento dos troncos e copas das arvores, abaixo no chalé, pendem armas improvisadas, todas com cabos longos de madeira.
O cuidado do autor para evitar a identificação de quem lê com os invasores fica evidente quando observamos a separação dos subcapítulos. Quase todos os subcapítulos começam com a indicação de que o ponto de vista é de Wen, Eric ou Andrew. Somente no final do livro, após um fato que modifica toda a percepção sobre a história, aparecem três subcapítulos com pontos de vista diferentes. Não vou dizer quais são esses pontos de vista, caso você queira ler o livro e ter uma experiência diferente do filme.
Ainda com relação à forma e à estrutura, as diferenças dos pontos de vista se expressam no texto. O caso mais evidente é o do ponto de vista de Wen. Nos subcapítulos dominados por ela, as palavras são mais simples, as frases mais explícitas, e há a redução de deduções da narração para aquelas que seriam possíveis apenas com a experiência de vida de uma criança. Ainda assim, o texto é feito para nós, então, essas características não são levadas ao extremo, como se quisessem reproduzir o modo de pensar de uma criança.
Quando o ponto de vista é o de Eric, o texto considera as experiências religiosas do personagem, sem a necessidade de realizar retornos muito detalhados e didáticos e sem desrespeitar tais experiências. No caso dos subcapítulos de Andrew, o texto se torna mais intelectual e com mais referências, deduções e análises das situações e comportamentos. Com essa sutileza, o autor faz com que tenhamos a impressão de nos integrarmos àquela família sem que precisemos verbalizar a compreensão disso.
Essa característica do texto serve, ainda, para outro fim. Ao revelar pouco e valorizar as impressões e pontos de vista dos protagonistas, o autor consegue criar tensão sem muitas ações das personagens e sem nos dar informações privilegiadas. Isso é difícil, pois uma das ferramentas mais conhecidas para criar tensão no público é nos dar uma informação que as personagens não têm e nos deixar na expectativa de o que poderá acontecer. Sem isso, a gente poderia apenas se irritar e largar o livro. Mas, as personagens não deixam, e nós nos inserimos no cenário. Não conseguimos sair sem ter uma conclusão ou, pelo menos, uma explicação.
— Sua família deve escolher sacrificar por vontade própria um de vocês três para impedir o apocalipse. Depois que fizerem o que eu bem sei ser uma escolha impossível, então devem matar o escolhido. Se não conseguirem escolher ou não conseguirem levar o sacrifício até o fim, o mundo acabará. Vocês três viverão, mas o restante da humanidade, mais de sete bilhões de pessoas, vai se extinguir. — O tom de voz de Leonard, sem nuances, como se lesse os anúncios matinais antes de um dia de aula, torna-se a súplica emocionada e sem fôlego de um fanático. — E vocês só viverão o suficiente para testemunhar o fim de tudo e ficar perambulando a sós pelo planeta devastado, definitiva e cosmicamente sozinhos.
A escolha muito difícil que a família deve tomar é o sacrifício de um dos três pelas mãos dos outros dois. Os invasores dizem que visões lhes mostraram o caminho para o chalé e, caso a família não realize o sacrifício, o mundo se acabará com inundações, doenças, a queda de pedaços do céu e a escuridão completa.
Após invadirem o chalé, essas quatro pessoas se apresentam como Leonard (líder do grupo e professor do primário, educado, grande e forte), Redmond (um arruaceiro agressivo e muito ansioso), Sabrina (uma enfermeira explicitamente desconfortável com a situação e o grupo da qual faz parte) e Adriane (uma jovem cozinheira insegura e, aparentemente, insatisfeita com a própria vida). Essas quatro pessoas insistem que não se conheciam antes de começarem a ter visões e se intercalam para tentar convencer a família a fazer a escolha impossível.
Nos próximos parágrafos, vou falar diretamente de uns poucos acontecimentos determinantes da história. Caso não tenha lido o livro e quiser pular, fique à vontade.
***
Durante a invasão da casa, Eric sofre uma queda, bate a cabeça e tem uma concussão. Com a vista muito sensível à luz, a tontura, a dor e a tensão, ele passa a ter alucinações. Junto com seu histórico religioso, essas alucinações passam a afetar suas decisões para o resto da história. Andrew sabe que isso poderia acontecer e, desde o começo, preocupa-se que o marido possa ser influenciado pelos invasores, pois está fragilizado.
Como a família, obviamente, não escolhe se sacrificar, Redmond veste uma touca branca, ajoelha-se e é assassinado com muita violência, no meio da sala. Após o sacrifício de Redmond, Leonard liga a TV em um jornal e faz com que todos assistam a notícia de um terremoto seguido de um tsunami. Supostamente, essa seria uma das visões que o grupo teve.
A partir desse ponto, sempre que algo ocorre e que, sem análise, possa parecer uma corroboração das supostas visões, há um subcapítulo em que Andrew explica como o grupo encaixa, deliberadamente, os fatos nas suas crenças apocalípticas. Quando não há um fato imediato que corrobore a crença, por exemplo, Leonard apenas pede que todos esperem até que qualquer coisa aconteça.
Nesse ponto do livro, o personagem de Leonard ainda deixa dúvidas. É difícil ter repulsa por ele de imediato. Ele é educado, parece sincero, evita a violência e demonstra profundo sofrimento pelo sofrimento de outras pessoas. Essa aparência, no entanto, é desmascarada em uma cena que, para a maioria, pode passar batida.
Durante a noite, Leonard cerca Wen longe dos pais e tenta manipulá-la para que advogue pelo sacrifício. Quando pensamos em Leonard como o tipo de sujeito capaz de acossar uma criança sozinha, no meio da noite, e chantageá-la emocionalmente para que escolha matar um de seus pais, não há como duvidar de que ele tenha manipulado aquelas três pessoas. Não há como duvidar de que ele fosse capaz de convencer Redmond, Adriane e Sabrina de que eles tiveram visões sem se influenciarem no chat online em que se conheceram. Aliás, essa é uma dúvida recorrente do grupo: se conversaram sobre as visões antes de tê-las ou não.
Em sintonia com esse caminho escolhido para a história, o autor não dá muitos detalhes sobre o acontecimentos externos. Não sabemos as reais consequências do tsunami, ou a escala da epidemia de gripe, ou quantas quedas de aviões foram confirmadas. Mesmo esses eventos, nós apenas os conhecemos pelas notícias dos jornais. Convenhamos, é difícil escolher um dia em que, ao ligar o jornal, não haja tragédias de médias ou grandes proporções que aconteceram há pouco tempo ou estão prestes a acontecer.
O chalé no fim do mundo abre discussões sobre fanatismo. Mais do que saber se o que move os personagens é possível de ser provado ou não, cabe perguntar como as pessoas podem ser levadas a se sentirem responsabilizadas pelo destino da humanidade de modo individual, ao ponto de torturarem e matarem outras pessoas e a si mesmas.
Como nós podemos impedir o surgimento dessas síndromes de salvadores e mártires? Muitas pessoas tanto projetam isso em figuras mitificadas quanto encarnam parte ou o todo dessa condição. Quando alguém acredita que, ao explodir uma bomba em um aeroporto, vai salvar o país de algum mal abstrato e pouco compreensível, é algo bem parecido com isso.
Outro aspecto que vale destacar sobre os elementos que o livro pesca de seitas reais, é a estrutura que organiza seus discursos. As construções conspiracionistas sempre misturam misticismos, alienação, percepção analítica no lugar de comprovação científica e medo do apocalipse (seja ele uma execução divina, uma pandemia, a revolução comunista, o colapso econômico ou o fim da sociedade judaico cristã ocidental).
Sobre o final: diferente do filme, o livro não se rende à ideia de sacrificar um homem gay para salvar o mundo dentro de um ritual cristão. A analogia óbvia dos quatro invasores com cavaleiros do apocalipse e suas pragas tem sua serventia. Se essa analogia pobre fosse o fim da história, o que teríamos seria apenas uma peça repetitiva e cafona. Ao ultrapassar esse ponto e trabalhar o drama de Eric e Andrew como os sobreviventes, o livro abre margem para compreender que, diante das tragédias, nós continuamos a viver em uma realidade apocalíptica. Mas, nessa realidade, o mundo só acaba para alguns.
Nós não podemos impedir o fim do mundo e o motivo não está em nenhum sacrifício de sangue. O motivo é que não existe apenas um mundo. Mundos já acabaram e acabam o tempo todo.
Nós poderíamos impedir fins de mundos. Para isso, sim, seria necessário rever nosso passado e interpretar os desastres que acontecem de modo coletivo, não com a crença de uma ação milagrosa ou em algum tipo de salvador que vá assumir toda a responsabilidade. Muita gente cai nesse buraco, pois acreditar no mito do mártir salvador significa que tudo vai se resolver sem que a maioria de nós tome muito trabalho. E não tem jeito, até para quem acredita em milagre, todo mundo vai precisar tomar muito trabalho se nós quisermos consertar as coisas.
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