
Robert Colescott, The Wreckage of the Medusa (1978). © 2019 Estate of Robert Colescott / Artists Rights Society (ARS), New York. Private Collection. Photo: Ray Litman. Com pinceladas fortes e formas estilizadas, quase cartunescas, vemos um mar revolto. Entre as ondas, espalham-se pessoas e objetos. Ao fundo, no horizonte, o navio explode e afunda, enquanto um peixe salta e a lua minguante amarela aparece.
Texto de Rodrigo Hipólito
Acordei
O interfone tocou às sete da manhã. Tinha ido dormir depois das três da madrugada. Estressado. Acordei de um pulo. Xinguei antes dos pés alcançarem o chão. Pensei que fosse uma entrega. Já tinha sido acordado nesse horário para receber um pacote qualquer, bem em um domingo.
Sete da manhã pode não parecer tão cedo. Para a maioria, o dia já começou há horas. É raro alguém considerar que muita gente trabalha até tarde e, logo, precisa dormir até tarde. Compreender que o mundo não para quando você vai dormir deveria ser um princípio de educação.
A urgência
Não sei se sempre foi assim, mas, percebo o alargamento da pressuposição de que todas as pessoas devem estar disponíveis a qualquer hora. Se te enviam uma mensagem e você demora alguns dias para responder, é possível que haja alguém em surto do outro lado da tela. Se for uma mensagem de trabalho, pode ter certeza de que não vai contar como hora extra, mesmo que a cobrança tenha chegado no fim de semana.
Não adianta explicar que você só está disponível em horário adequado. A pessoa vai te dizer que é “rapidinho”, que é só uma “coisinha”. Se for ignorada, ela poderá ser uma pedra em seu caminho. Se você perder a paciência e responder à grosseria disfarçada de boa vontade, a pessoa fará o que estiver ao seu alcance para destruir a sua vida. Não duvide disso. Pessoas perdem o controle com muita facilidade.
É possível que a entidade da comunicação insistente que tomou o corpo do seu colega de trabalho não tenha tanto domínio sobre suas ações. Não duvido de que ela apenas passe adiante uma cobrança que recebeu de outro espírito insatisfeito com a própria impotência. É uma corrente que passa a bomba para o próximo e torce para que a explosão ocorra em um colo distante.
Não vou negar que meu lamento por tragédias distantes, quase sempre, possui uma parte de alívio por não ser comigo ou com as pessoas de quem gosto. Deve ser parecido com você também. Pode admitir. Ninguém está observando, ao menos não agora.
Meu telefone não toca. Está no silencioso faz anos. É um baita privilégio, eu sei. Por outro lado, não sou pendural de nenhum teto familiar, tampouco sou médico ou bombeiro. Nada na minha profissão pede urgência. Não tenho carro e não dirijo, logo, não posso dar carona em casos de emergência. Aliás, recebi um total de zero ligações e mensagens urgentes, durante os anos em que meu telefone tocava. Depois do voto de silêncio do aparelho, esse número não se alterou.[1]
O sono
Não me esqueci daquele domingo, indicado no começo do texto. Pode parecer tudo meio bagunçado, mas, tem uma lógica aqui. Ao menos eu espero que tenha.
Além de muito estressado, principalmente com a falta de dinheiro, a falta de sono de qualidade seguia há semanas. Uma coisa alimenta a outra, eu sei. Juro que fazia o possível para evitar o pior. Exercícios, alimentação saudável, atenção com os detalhes da casa e da intimidade, valorização das pequenas alegrias do dia a dia, a companhia de amizades e muito diálogo. Nada disso adiantou.
Há anos, entendi que meu melhor sono acontece entre as sete e as nove da manhã. Passei boa parte da infância, juventude e vida adulta em uma rotina bem distante disso. Madrugava para estudar ou trabalhar. O estresse daquele domingo não era novidade. Eu vivi na beira de explosões violentas por um bom tempo. De vez enquanto eu caia.
As pessoas têm necessidades de sonos diferentes. Isso não é novidade. Outro dia, passei pela notícia de que “especialistas apontam” que adolescentes necessitam dormir mais tarde e acordar mais tarde. Já passei da adolescência há muito tempo. Mas, você entendeu que isso é apenas um exemplo para como as rotina de horário comercial é uma merda. Não encontrei a notícia original, mas esta outra também serve: “Segundo especialistas, obrigar crianças e adolescentes a acordarem muito cedo dificulta que eles durmam durante o número suficiente de horas para terem um bom rendimento no colégio.”
Obviamente, essa reportagem dá dicas para que as pessoas continuem a seguir a padronização das escolas, que obedecem à padronização das jornadas de trabalho. É como se não houvesse escapatória, embora sempre haja.
Deixei, no rascunho deste texto, um tópico que dizia “Como isso resulta em cansaço e incompetência.” Era para eu escrever mais algumas linhas sobre isso. Mas, vou deixar que você exercite a dedução.
Melhor do que isso. Mudei de ideia. Não se esforce para deduzir nada. Gaste esse tempo com a leitura de “Burnout na era da positividade”. Esse é um dos muitos ótimos envios de Vanessa Guedes, na newsletter Segredos em Órbita.

The Interview (2020), Dana Schutz. Courtesy Louisiana Museum of Modern Art; © Dana Schutz. Com pinceladas explícitas e cores fortes, formas esdruxulas e quase abstratas, há duas pessoas em plano amaricando, uma de frente para a outra. As cabeças são muito grandes e as feições simplificadas e borradas. A da esquerda, o que parece ser uma pessoa negra, olha com o olho vermelho, de perfil, e estende seu braço que é um osso branco, com uma bola preta na ponta, para atingir a forma rósea e distorcida do que deveria ser a cabeça de uma pessoa branca. Ao fundo, um céu azul com nuvens brancas que mais parecem bolas de algodão.
O surto
O tópico seguinte do rascunho me lembrava de voltar à história inicial e contar o que aconteceu naquele domingo, após atender ao interfone. É algo um pouco constrangedor e poderia configurar um crime. Mas, acredito que esse aspecto do ocorrido já foi superado.
No interfone:
— Oi — Juro que, apesar da voz arranhada, tentei não soar mal-humorado.
— Bom dia. É a recenseadora do censo. Você pode me atender pra responder às perguntas?
— Bom dia. É. Agora? Não tem como voltar em outro horário? A gente acabou de acordar.
— Olha. Essa é a quinta vez que eu tento. Se o senhor não responder agora, vai ter que pagar uma multa de doze mil reais.
Nesse ponto, você pode imaginar que eu, enfim, acordei. Mesmo depois de pular da cama e de todo o estresse, ainda guardava esperanças de voltar a dormir. Só que duas coisas, nessa frase, fizeram meu sangue ferver. Não, não foi a surpresa da possível cobrança de doze mil reais.
A pessoa do outro lado da linha mentiu. A não ser que ela tenha passado para fazer seu trabalho de madruga, em um horário em que, costumeiramente, somos abduzidos por forças alienígenas; ou que exista uma organização especialmente dedicada a promover pegadinhas intrincadas, que envolvam hipnotizar pessoas aleatórias e atirar suas vidas em uma espiral de problemas burocráticos,[2] aquela foi a primeira vez que o censo bateu à nossa porta.
O segundo ponto daquela fala que fez meu sangue subir foi a naturalidade com que ela falou da multa de doze mil reais. Não que o número deixe de me ferir. Dói, só de pensar em perder esse dinheiro. Mas, naquele momento, um raio atravessou minha mente e ofuscou toda a realidade com três frases de pouco impacto: “Não é possível. Só dois tipos de pessoas falariam em uma multa de doze mil reais logo na segunda frase trocada com um desconhecido por interfone, às sete horas da manhã de um domingo. Ou essa pessoa guarda níveis alarmantes de sadismo, ou quer me dar um golpe.”
Optei, de imediato, pela tentativa de golpe. Nunca tinha ouvido falar sobre essa multa de doze mil. É muito dinheiro. Não parecia condizente com uma negação de resposta ao censo do IBGE. No máximo, eu imaginaria um valor pouco acima da multa por ausência não justificada em eleições.
— Tá bom. Agora eu sei que você tá tentando me dar um golpe — desliguei o interfone. Pisei forte de volta ao quarto. Bufava. Tremia. A crise desceu como uma tromba d’água e nada poderia ser feito para controlá-la a tempo.
Abri a janela do quarto. A fotofobia arranhou meus olhos. Não conseguia enxergar direito o portão do prédio. Apenas manchas e vozes em um universo branco luminoso e sem perspectiva. Deduzi que a pessoa que tentou me dar o golpe conversava com algum morador do condomínio ou com um transeunte. Gritei. Xinguei. Janelas se abriram. Acusei o golpe para quem quisesse ouvir.
Fechei a janela. Sentei e abrir o celular para pesquisar. A multa era real.[3] A crise de estresse começou a mudar, mas não foi embora. Obviamente, as regras da multa não se resumiam na frase dita pela pessoa do outro lado da linha. Mas, havia mais chances de não ser um golpe. Ainda que fosse somente uma pessoa sem noção de como funcionam as comunicações de golpe, eu tinha agredido verbalmente uma servidora. Já era. Crime.
Pior do que tudo isso. A vizinhança poderia passar a me confundir com um alucinado bolsonarista. Vizinhos reclamariam com a administração do condomínio e o dono do apartamento exigiria a saída do imóvel. Pelos meses seguintes, eu não teria um minuto de paz.
Se eu tinha alguma dúvida sobre isso, ela se dissolveu ao ouvir a recenseadora ser atendida pelos vizinhos de porta. Não era um golpe.
O mal ainda poderia ser desfeito, ao menos em parte. Mas, eu não conseguia me mover. Estava consumido não apenas pela vergonha, mas pela crise violenta. Se eu saísse pela porta para chamar a recenseadora, por mais consciente da situação que estivesse, não pronunciaria as palavras corretas. Eu ainda seria violento e descontrolado.
Alana se levantou e conseguiu alcançar a mulher antes que ela atravessasse o portão. Em menos de dez minutos, as perguntas foram respondidas. A servidora riu ao dizer que era a primeira vez que alguém a acusava de ser uma golpista. Duvido disso.
O que fazer
Durante muitos anos, não consegui admitir que sou incapaz de lidar com situações as mais corriqueiras, durante uma crise de estresse. [4] Antes de entender isso, as confusões se multiplicavam e boa parte do que saía da minha boca, por semanas, ou meses, eram grosserias. Insônia. Úlcera. Dívidas. Péssimas decisões cotidianas em todas as áreas da vida. Felizmente, essa época passou.
Apesar do subtítulo que eu inseri para o final deste texto, e que pretendo manter, não sei muito bem o que fazer. Tenho uma estratégia pessoal que mantenho, há anos. Isso funciona pra mim, mas soa idiota demais pra propagar como um método.
Quando o dia acorda errado, eu apenas desisto. Qualquer coisa que você tentar fazer, nesses dias, dará errado. Suas decisões podem resultar em pequenos desastres particulares ou afetarem a sua vida e a de outras pessoas por muito tempo. Ao pensar no que poderia ter sido feito, na maioria das vezes, a conclusão é de que bastava não fazer.
Desistir não deveria ser algo encarado como fundamentalmente negativo. Falei disso em um dos episódios mais ouvidos do Não Pod Tocar, NPC 01: Como desistir de um doutorado. Escute o episódio, ou leia a transcrição. Vamos economizar as palavras para que eu possa encerrar esta crônica.[5]
Hoje, o dia acordou errado. O gás acabou. Eram cinco horas da madrugada. Tomamos o café morno e comemos as torradas murchas. Ainda com sono, tentei cochilar meia hora, antes de ligar o computador. Tive pesadelos. Acordei de novo. O dia continua errado. Chegou um e-mail sobre falha na declaração do imposto de renda. O entregador deu o troco do gás no PIX, mas ainda não caiu na conta. Posso ter levado mais um golpe. Já não sei se o que está naquele botijão é gás de cozinha. Devo confiar nessa instalação ou há o risco de explodir todo o andar?
Tudo o que veio em seguida foi estressante. Enquanto digito estas palavras, o dia está pela metade. Vou parar por aqui. Devo apenas cuidar para que as maldições de hoje não atravessem a fronteira da meia-noite.
[1] Há uma pequena chance de que você, que lê este texto, considere um absurdo o último parágrafo. Caso alguns argumentos contra o silenciamento do celular lhe ocorram, é justo lhe informar que dezenas de pessoas já estiveram na sua posição. Muitas horas de conversas e discussões acaloradas que, infelizmente, não puderam se transformar em um seminário com publicação registrada, foram travadas sobre esses tópicos. Há, certamente, umas poucas exceções de urgência não relacionadas com profissões imprescindíveis. Não me encaixo em nenhuma delas e a maioria das pessoas também não. O argumento mais sincero que já ouvi para manter o toque do celular fora das poucas exceções aponta para um sentimentalismo familiar infantil. A pessoa acredita que, a qualquer momento, poderá ocorrer uma emergência e a vida de um familiar dependerá da sua resposta imediata. Quase sempre, se você não dirige, não tem carro e/ou está muito longe da pessoa que precisa de apoio médico, isso apenas atrasará a chamada da ambulância. Não quero desprezar o apreço que você possa ter pela sua família e amigos. Só quero dizer que isso não te faz uma pessoa melhor.
[2] Isso parece muito improvável. Mas, caso você tente encontrar parâmetros consistentes para diferenciar os grupos soterrados por problemas burocráticos daqueles que jamais precisaram aguardar mais do que dez minutos em um guichê da receita, talvez, conclua que uma conspiração de pegadinhas não soa tão absurda.
[3] Acho bom deixar registrado que a divulgação sobre essa multa é quase nula. Após essa situação, passamos a reparar m todas as reportagens de telejornais sobre o recenseamento e em nenhuma delas essa possibilidade de multa foi sequer mencionada. Imagino que outras pessoas também tenham ficado surpresas, como eu, ao serem confrontados com essa informação, pela manhã, enquanto estavam meio-vivas e meio-mortas.
[4] Vou chamar assim. Que ninguém me cobre um CID.
[5] Talvez, eu transforme esse texto em um episódio do Não Pod Chorar. Só não considere isso como uma promessa.
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