Esta é uma transcrição do podcast Não Pod Chorar 41: Como fazer confissões ao pôr do sol. Nesse episódio, Fabiana Pedroni fala sobre como dar atenção para a própria experiência de sentir.

Captura de tela da série I Told Sunset About You, de 2020. Em primeiro plano, camisa social branca com gravata em cabide pendurado em cadeira. Ao fundo, desfocado, ambiente de casa com mesa e cadeiras vazias.
Apresentação
Olá! Tá começando mais um Não Pod Chorar. Eu sou Fabiana Pedroni e este é um derivado do Não Pod Tocar. Aqui, nós contamos algumas desventuras da vida e tentamos pensar em modos criativos de lidar com elas.
Se você chegou aqui agora e não conhecia o Não Pod Tocar, este é um podcast sobre teoria, história, crítica de arte e temas afins. No nosso feed, você encontra, além dos episódios do Não Pod Chorar, os nossos programas de temporada, com ensaios, entrevistas e bate-papo, e o Pataquadas, no qual a Alana de Oliveira repercute as principais notícias do mundinho da arte, com colunas abertas de Dennis Almeida e Camila Saloto.
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É isso, dados esses recados iniciais, neste episódio, você vai ouvir algumas reflexões sobre como sentir os sentimentos.
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Uma hora de atendimento, uma hora de lágrimas reprimidas em um lago nos olhos de minha mãe, uma hora de meu corpo se metamorfoseando em árvore. Fechando-me em casca para virar boia furada de criança que nem sabe nadar. Uma casca de árvore boia que nem bosta, deve fazer sentido ser forte e aguentar firme. Se eu não respirar, vou inflar que nem baiacu e flutuar por aí.
Várias imagens se alastravam por cada canto de minha mente. Minha mãe a ouvia atenta. A voz da mulher não entrava em meus ouvidos, tinha muita casca no meio do caminho. Talvez ela tenha percebido minha inércia de árvore, talvez ela tenha entendido que sons não me alcançaria. Mergulhada nos olhos de minha mãe, lá do fundo desse lago, as palavras eram sons distantes.
Senhora arrumada demais pra um passeio na frente do lago de minha mãe. Parecia até ofensivo ela ser tão bonita. Eu nadava como baiacu naquele lago, com cheiro de peixe, sem maquiagem, sem salto, sem celular. Quando comecei a fazer a lista de objetos ausentes, a mulher estendeu a mão em minha direção e meu corpo respondeu antes que eu pudesse recolher meus galhos. Peguei de suas mãos uma folha de papel meio amassada. Foi aquela folha em branco que me trouxe pra margem do lago. Ela me disse:
— Parece ser só uma folha em branco, mas ela pode te ajudar, se você conversar com ela.
Foi a única frase que consegui ouvir. Fui pra casa repetindo várias vezes, de diferentes formas: — Eu estou bem, mãe. — até que seu lago secasse.
Não sei onde a tal folha foi parar, acho que a deixei no consultório, mas foi assim que comecei a escrever um diário quando eu tinha 15 anos, meses depois de meu pai falecer. Falei de vários assuntos, aumentei as listas, criei até tabelas, me descobri como pessoa metódica, anotava data, hora e que música estava ouvindo no começo da escrita.
Hoje identifico nessa escrita de diário o início das catalogações que sempre me deram tanto prazer. A que guardo com maior carinho são os flocos de neve artificial roubados dos shoppings em todo Natal. Pedaço de silicone, branquinho, retirado das decorações, de forma discreta, num amarrar de cadarço, colocado em saquinho transparente, com a habilidade de uma investigadora criminal, acrescentando dados de coleta: data, onde e com quem estava. Como toda ação afetiva, aos poucos ela perde sentido. Fiquei mais de uma década sem coletar neve, até que ano passado fiz a decoração de Natal daqui de casa e coletei a primeira neve que eu mesma criei desmanchando o enchimento de uma almofada. Ao final do mês, a coleta já estava contaminada de purpurina, poeira e pelos de cachorro. Uma riqueza.
Era assim que eu construía meu diário. E que talvez eu construa a minha escrita literária ainda hoje. Uma imagem, que puxa outra, que puxa um comentário, que puxa um detalhe, que puxa um causo, que puxa uma pessoa, que puxa um sentimento, que puxa um lago.
Eu não usava folhas de papel, porque me dava certa ansiedade da materialização da letra. Uma letra de infância, de diário com cadeadinho enferrujado. Escrevia no computador, com a possibilidade de a digitação ser tão rápida quanto a confusão mental. Escrevia de tudo, menos sobre a morte de meu pai. Provavelmente era um tipo de fuga, daquela Fabiana adolescente, mas uma fuga que me colocou dentro de vários pensamentos que eu não sabia que tinha até minhas mãos começarem a escrever sobre eles.
Nesses 21 anos de diário, houve anos em que eu não voltei, houve anos em que eu escrevi apenas uma linha, ou poucas linhas, uma foto, um detalhe do dia. Como acontece com tudo na vida, há diferentes intensidades. É estranho poder encontrar aquela Fabiana, às vezes um encontro sofrido e melancólico. Mas eu volto. Volto para a página em branco sempre que preciso conversar comigo mesma.
Foi uma frase da psicóloga e uma ação minha que mudou muito a forma como articulo pensamento e me expresso. É sobre isso o episódio de hoje. Um misto de encontro de si e exteriorização de si.
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Eu demorei muito para encontrar o tema do episódio. Queria fugir para todos os lados, por cansaço, por preguiça. Quase falei sobre cansaço, novamente, porque ele não me deixa; porque sempre que me deparo com o mundinho das artes, em seus problemas de nicho: o elitismo, o mercado, o artistinha de ego inflado que enche a boca como baiacu e grita ineditismos repetidos desde a década de 1960, tudo isso e mais um pouco, cansa, desanima, nos imobiliza o pensamento.
Mas algo estava me martelando, me fazendo querer voltar à folha em branco. Você sente isso às vezes? Uma vontade de apagar o mundo, se fechar numa bolha e ouvir só você mesme?
É tanta informação, tantas imagens, o Twitter gerando surtos coletivos, muitos correndo para o Koo, as piadas de quinta série, os atos terroristas contra a democracia, a copa, a receita federal, o cachorro batendo a pata no braço e pedindo carinho, o trabalho a ser trabalhado, mas que não sai do lugar, a mãe gritando da cozinha pra você ver se tem promoções de fralda pra a avó, o irmão pedindo pra abrir uma pasta de arquivos antigos e achar um documento que precisa com urgência, o vizinho martelando o dia inteiro na sua cabeça uma reforma que parece que ele tá fazendo um palácio dentro do apartamento, ou está comendo todas as paredes do lugar e esperando que o prédio caia como jenga, amigues brigando entre si e te colocando no meio, a adolescente que se mata e os jovens reclamam que não terão mais o conteúdo semanal dela no Youtube, o cupom de desconto que vai te fazer comprar uma coisa que você nem precisava comprar, a entrega que deu errado por que o porteiro tava chorando no banheiro da guarita, você ouviu o choro, voltou correndo pra casa, deixou o carteiro preso pro lado de fora, foi pro quarto chorar também, porque não entende, no caos, onde você se encaixa.
E eu gosto de quebra-cabeça. Amo encontrar um sentido e caminho para cada pecinha. Mas há caminhos que são muito mais difíceis de trilhar. Se o caminho para o outro é complicado, o caminho para si pode ser uma tormenta. Eu sei, está difícil encontrar palavras que não deixe o que quero dizer um tanto clichê. Parece que estamos, há séculos, dizendo a mesma coisa, que para se estabelecer um relacionamento saudável com outra pessoa, seja de qualquer tipo de relacionamento, antes é preciso ter uma relação saudável consigo mesme. E porra, como isso é difícil!
Por mais que uma parte de minha atuação seja na área da educação e lá, naquele mundinho, se prese pela educação sensível, falhamos, miseravelmente, em educar para a sensibilidade. Nos tornamos adultos insensíveis, com o outro e conosco.
A folha branca, que na verdade foi a escrita íntima, foi uma forma de me aproximar de mim mesma. Quando adolescente, não sabia da dimensão que essa ação teria na minha vida adulta, e educacional. Quando proponho a escrita de um texto livre, a escrita de algo que se goste, pelo que se tenha interesse, quando proponho a construção de uma caixa de memórias, quando proponho a construção de uma imagem, na verdade, estou propondo uma aproximação de si. O que você gosta? O que você sente? O que você pensa?
Ouvi muito de colegues de trabalho:
— Não espere que eles pensem e reflitam, vai ser um caminho árduo, não fomos ainda ensinados a pensar.
Como vou comunicar meus sentimentos se eu mesma não os compreendo, se eu mesma não aprendi a senti-los?
Duas pessoas adultas discutem por um pote de manteiga deixado vazio dentro da geladeira. Ninguém comprou manteiga e amanhã é feriado. O supermercado não vai abrir, ficarão dois dias sem manteiga, ou mais, porque não havia espaço na agenda para comprar manteiga na próxima semana. Acusações são feitas. Ninguém sabe quem guardou a manteiga vazia. Uma pessoa diz que a outra sempre faz isso, de deixar coisas vazias na geladeira; a outra é acusada de sempre deixar coisas estragadas na geladeira; mas quem comprou a geladeira pode ter razão, ou quem comprou o apartamento, ou quem inventou a manteiga, pouco importa. Descarrega-se a raiva como um caminhão de entulho. A raiva cresce pra cima de outras questões ignoradas. Ninguém tirou o lixo ainda. Uma terceira pessoa chega na cozinha e diz que nada daquilo importa, é patético brigar por uma manteiga, porque na hora que essa pessoa precisou de ajuda, ninguém quis comprar nem manteiga nem nada pra ela, viveu de pão seco por meses. Questiona-se o sentido de família. Questiona-se o sentido de afeto. Sugere-se uma separação. Todos choram. Vem uma pessoa lá do quarto, que não aguentava mais a confusão, abre a geladeira, de trás da sacola de pepinos, surge uma manteiga, novinha. Problema resolvido. Todos engolem o choro e cada um volta pra seus afazeres, vão se atrasar pra reunião.
O problema não foi resolvido. Você sabe disso, aquelas pessoas também. O problema nunca foi a manteiga.
“Se houver um problema, a gente conversa” – é o que todes dizem quando iniciam um relacionamento, um amor, uma amizade, uma nova disciplina, pois o ambiente da sala de aula deveria ser um lugar seguro.
Mas, como haverá conversa se para identificar um problema primeiro precisamos saber o que sentimos em relação a diversas situações? Talvez neguemos um problema porque não sabemos sentir o mundo, não aprendemos a sentir e expressar sentimentos.
Há uns anos, vi uma proposta de atividade para o ensino infantil que parecia boba, mas muito daquilo que julgamos como bobagem para a infância é o que nos falta na vida adulta. Em um painel, na porta de entrada da sala de aula, a criança escolhia um broche. Eram indicadores de emoções. Acho até que foi na época que lançaram o filme Divertidamente. A tristeza era um broche azul, a raiva vermelha, a felicidade um solzinho amarelo, a vontade de conversar era uma flor rosa, a vontade de querer ficar sozinho, uma flor azul. Acho que era isso. No começo, eram poucos broches, na medida em que se ia conversando sobre o que eram sentimentos, sobre identificar como se estava, as crianças iam criando sentimentos. E não era tarefa fácil, muitas crianças pegavam broches de forma aleatória. Mas o primeiro passo estava dado, era pensar sobre. Junto dessas ações, havia livros para pensar sentimentos, pensar essa abstração que é sentir, rodas de conversa, brincadeiras. Enfim, o que quero tirar daqui é: fomos educades para a sensibilidade?
Às vezes as coisas estão na ponta da língua, você dá voltas e voltas, faz uma pipoca, come por impulso, compra algo por impulso, tenta a todo custo suprir algo que falta que você não tem ideia do que seja.
E não à toa esse campo vazio e confuso de um adulto que não aprendeu a sentir é espaço ideal para discursos de ódio se instaurarem. Esses discursos simplificam nossa relação com o mundo e com o outro de forma tão impositiva e violenta que parece que tudo estará resolvido. Não é preciso pensar, não é preciso sentir. Nem mesmo o ódio se sente, apenas se reproduz em comportamento.
E sentir, sentir pode doer. Sentir é trabalhoso.
Sentir é tirar o sentimento do mundo abstrato para a carne, para o corpo, para dor, para felicidade que te faz querer correr, para todo tipo de sentimento que se mistura em uma paleta infinita de cores. Depois, de dentro dessa paleta, você joga pra fora de si o sentimento, você o expressa pro mundo, pelo corpo, pelo gesto e pelas palavras. São caminhos difíceis, porque basta um erro de interpretação do que se sente e o pote de manteiga vazio vira um demônio.
Foi assim que você se despediu de uma amiga como se fosse terminar um relacionamento de anos, “fique bem”, foi assim que você balançou a cabeça numa conversa de horas para no final concluir que “é coisa do seu ascendente”, foi assim que você engoliu um choro e quer chorá-lo até hoje, mas não sabe bem por que era mesmo.
Às vezes confundimos a forma como uma criança se expressa. Ela se senta no chão, chora, grita alto, porque está frustrada, porque ela não entende o que está acontecendo com ela. Não consegue encontrar, ainda, palavras para expressar o que quer, ela ainda não sabe, de forma tão evidente, o que ela sente ou quer do mundo. Dizemos que é birra quando, na verdade, é sentimento. Ela está sofrendo para conseguir se entender no mundo.
Adultos também esperneiam, mas suas pernas são facas afiadas que cortam os que estão pela frente. Sem entender seus sentimentos, uma pessoa adulta manipula situações, sentimentos alheios, exige respostas quando não sabe, ainda, as perguntas.
E, assim, a vida vai passando em conflitos que se repetem, como se o mundo te tratasse sempre da mesma forma. Com algumas pequenas variações, com a mudança de pessoas, mas sempre os mesmos problemas. Quando você parou para se ouvir?
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Ano passado, em 2021, eu assisti uma série muito boa, para a qual sempre volto em pensamento quando falo de sentimentos. Lançada em outubro de 2020, I Told Sunset About You (ou Eu falei de você para o pôr do sol, em uma tradução livre) é uma série tailandesa do gênero BL, quer dizer, Boys Love, que narra relações homoafetivas entre homens. Dentro do universo de produções BL, ITSAY, como é abreviado o nome da série, é uma referência icônica sobre sensibilidade narrativa, desenvolvimento de personagens e o cuidado com aspectos técnicos, como fotografia, áudio, trilha sonora, direção de arte. Vocês encontram, facilmente, a série legendada em fansubs, não vou listar aqui o link, porque pessoas ruins, homofóbicas vivem de encontrar esses links e derrubar os sites e acessos. Duvido um pouco que essa pessoa esteja ouvindo o episódio, mas pode encontrar o link na postagem, em uma busca. Então, melhor ter cuidado. Dada a justificativa…
A série conta com duas partes, com cinco episódios cada, com uma média de 1h de duração, e acompanha a história de amor e amadurecimento dos adolescentes Teh e Oh-aew, em Phuket, uma ilha tailandesa, na primeira parte, e em Bangkok, na segunda parte.
Vai ser impossível trazer ITSAY para falar da profundidade dos personagens sem entregar spoilers. Então, já peço desculpas, e assistam a série.
A primeira parte mostra os dois adolescentes no último ano do ensino médio, se reencontrando, após anos afastados por conta de uma briga da infância, quando eram melhores amigos. Teh queria, desde pequeno, ser ator. Aos poucos, esse sonho vai ganhando espaço na série e se complexificando, como todo sonho que adentra a fase adulta. Para o Teh criança, conseguir interpretar um papel na peça de teatro da escola significava ter o reconhecimento da mãe, significava fazer algo fora da sombra do irmão mais velho. Quando Oh-aew ganha o papel, os dois amigos não conseguem falar de seus sentimentos e rompem a amizade. A primeira parte da série fala do reencontro, da intimidade reestabelecida, da descoberta dos sentimentos românticos.
Em todo o trajeto da série, o Teh faz as escolhas mais difíceis, o caminho mais tortuoso, de sérias consequências, porque ele não se conhece. A forma como a narrativa é desenvolvida não só te faz sofrer junto, porque sim, a gente chora um mundo, mas te faz compreender por que tomamos decisões ruins. Muitos telespectadores criticaram a construção do personagem, porque ele incomoda, porque ele arrasta as pessoas para sua confusão sentimental e as machuca na mesma medida em que se machuca. Mas tudo ali faz sentido com a personalidade impulsiva e introspectiva de Teh. Ele não consegue entender seus próprios sentimentos por Oh-aew, e mesmo quando ele quer ajudar, toma decisões sem se comunicar e, sem comunicação, o mundo desaba.
Falando de forma direta e com spoiler: na trama, o Teh já tem vaga garantida na universidade por um processo seletivo bem restrito que acontece antes das provas de vestibular. É um processo que pega só aqueles estudantes que têm melhores notas, ou algo assim. Mas o Oh-aew vai fazer o vestibular como os outros amigos, não tem essa vaga garantida e ele precisa estudar muito, especialmente língua chinesa. É aí que os dois se reencontram, num curso extra e intensivo de chinês.
Esse é um detalhe muito interessante na narrativa, porque o Teh é filho de mãe solo, chinesa, que tem um restaurante e sustenta a família. Teh é ótimo em língua chinesa, não faz nem sentido ele fazer essas aulas. Mas ele vai, porque sabe que lá encontrará Oh-aew. Ele o ajuda a estudar, e essa é a trama de fundo que vai atropelá-los no meio dos episódios.
Assim como o problema não era a manteiga, ali, o problema não é a prova.
No processo seletivo especial, Oh-aew tinha ficado de suplente. Então, ele ia fazer o vestibular geral. Enquanto isso, Teh já tinha a vaga, quase não ia nas aulas do Ensino Médio, só tinha que ir À Bangkok assumir a vaga. Mas aí vem a pilha de sentimentos não processados. Teh fica com medo de Oh-aew não passar na prova, misturam-se as relações afetivas de descoberta do corpo, da vontade romântica e da sexualidade com questões práticas e de planos futuros. Muita coisa ao mesmo, um caos dentro de Teh.
O que ele faz para resolver a situação? Simples, na cabeça dele, claro. Ele vai pra Bangkok, senta na cadeirinha, recebe a folha pra assinar a tomada de posse da vaga na universidade e espera… espera… e não assina. Ele desiste da vaga pelo Oh. Falando assim, pode ser que, em um outro tipo de produção, não tão bem trabalhada, esse ato seria tido como heroico, como sacrifício pelo amor, e, talvez, Teh tenha pensado dessa forma. Sem conversar sobre, sem pensar direito, sem analisar o contexto e os sentimentos, o resultado foi, na verdade, um machucado enorme em Oh-aew.
Essa decisão materializava a falta de confiança de Teh em Oh. E isso ultrapassa os limites de uma prova, vão para o sentimento, para a relação, para aquilo que se estava tentando construir a muito custo. Oh recusa a vaga de suplente e vai fazer a prova geral. Teh não entende, sofre, chora um mundo, e a gente chora com ele, chora com a mãe e o sentimento de desespero dela, da possibilidade de o filho não conseguir novamente uma vaga, chora os anos de assistir o filho estudando, perdendo noites de sono, chora pelo dinheiro investido, porque a educação lá é cara. Enfim, não é só uma prova.
No final, Teh faz a prova geral. Ele passa, mas, não para mesma vaga que tinha, na universidade que ele queria. Ele vai pra outra, pra sua segunda opção. A mãe fica feliz, pula de alegria, expressa o alívio que sente como mãe solo e imigrante. E Teh, bem, ele nos dá, no último episódio, a cena que eu considero mais linda da primeira parte da série. E olha que tem planos e cenas maravilhosas, porque a produção é impecável.
Uma cena vazia de personagens. Ele acabou de ver o resultado, a mãe comemora e, em seguida, o consola, por não ser da forma como ele queria, por seu filho não saber lidar com mudanças e consequências de atos. Ficamos sozinhos na sala, vemos a mãe seguir o filho para fora do quadro. A câmera vai se afastando, lentamente, abrindo o plano e nos mostrando o ambiente. Ouvimos, lá do fundo, Teh pedir desculpas para a mãe, enquanto ficamos ali, sentados à mesa, encarando o uniforme universitário que acabou de ser revelado, uma música profunda nos invade e sentimos nossos sentimentos.
São poucos segundos de cena, apesar de parecer um plano bem lento, mas é o momento em que temos uma pausa para absorver a complexidade de tudo o que aconteceu na série e culminou nesse desfecho. É o momento em que muitas pessoas vão apertar o botão de pausa e organizar os próprios sentimentos, porque nunca foi apenas uma prova.
Talvez eu tenha escolhido um recorte um tanto estranho para falar sobre sentimentos, visto que a série é, a todo momento, inundada por questões de sexualidade e descobertas de si, tratadas de uma forma muito sensível. Mas, para um episódio curto, e para falar de compreensão de sentimentos, nada melhor que algo que parece ser ordinário, comum. Um personagem tem que assinar um papel e assumir uma vaga. O outro precisa fazer uma prova. Tão simples, e tão confuso e tão vulnerável quanto qualquer sentir cotidiano.
Na segunda parte da série, trabalha-se a mudança do interior para a metrópole, a falta de uma rede de apoio, a solidão, os sonhos desgastados, as mudanças próprias da vida adulta. Muitos telespectadores que amaram a primeira parte, odiaram a segunda, porque é difícil de acreditar que personagens adultos podem não saber compreender seus próprios sentimentos.
Quem sabe, num outro momento, dedicamos um episódio oficial para falar sobre ITSAY. Por enquanto, eu lhes deixo com esse pequeno questionamento que pode reverberar em vários amassados de folhas em branco: O que é isso que você está sentindo?
Encerramento
Taí! Encerrando mais um Não Pod Chorar. Gostou? Não Gostou? Fala com a gente. Você pode entrar em contato com a gente através do nosso e-mail, que é naopodtocar@gmail.com, ou dos nossos perfis pessoais e oficiais, que estão todos linkados na descrição completa deste episódio, na postagem original, em notamanuscrita.com.
Em notamanuscrita.com você encontra, além dos episódios de todas as nossas temporadas, textos de processo, resenhas, crônicas, contos, críticas, ensaios, artigos acadêmicos e diversas outras produções.
Aproveita que você tá aí, e confere o finalzinho da postagem. Lá, você encontra uma chave pix e o link para o nosso picpay. Acesse picpay.me/naopodtocar e considere apoiar financeiramente este projeto.
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Por hoje é isso, se nada der muito, mas muito, muito errado, semana que vem, a gente tá de volta. Valeu! Falou!
Comentados
– [livro] Na volta a gente esquece, de Fabiana Pedroni;
– [noveleta] A morte do vizinho da serra elétrica, de Rodrigo Hipólito;
– [série BL] I Told Sunset About You;
– [campanha] Outras Histórias, quadrinhos poético-filosóficos, da Miramar Livros.
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