[resenha] A história termina com um carro vazando óleo no fundo de um lago em um ferro-velho abandonado, de Paula Gomes

Texto de Rodrigo Hipólito

GOMES, Paula. A história termina com um carro vazando óleo no fundo de um lado em um ferro-velho abandonado. KDP, 2021.

Eu gosto muito da voz narrativa desse livro. Ainda assim, ela é tão desprezível. Está, ali, um tipo de pessoa que todos nós somos, mesmo que não o tempo todo (certo, talvez não todos nós). É um tipo de relação com nosso mundo que surge, em grande medida, da frustração e da dificuldade de aceitar nossas próprias fraquezas e incompetências, enquanto outras pessoas, fracas e incompetentes, parecem viver muito bem com isso.

Faz mais ou menos um ano que li “A história termina com um carro vazando óleo no fundo de um lago em um ferro-velho abandonado”. Parte do enredo já me escapa. Isso não significa que o livro tenha sido pouco marcante. Pelo contrário. Se me vem a vontade de escrever uma resenha, tantos meses depois da leitura, é porque ele ainda volta à minha mente em diversas situações. Eu pensava nele, enquanto gravava o episódio “Como não morrer (ou matar) de inveja”. Em grande medida, isso é reflexo da forma da escrita de Paula Gomes. Eu consigo ouvir a voz da sua narradora no meu quotidiano. Não que eu esteja envolvido em algum dos micro conflitos e premissas estapafúrdias que ela injeta em seus livros. Tenho sorte e gosto de rotina.

Escuto alguma fala do seriado “Tapas & Beijos” e aquele tom de humor está lá; chego em casa do trabalho, depois das dez da noite, observo a reunião de condomínio na garagem do prédio ao lado e penso que o livro de expandiu para o mundo concreto; recebo os trabalhos de alunos para corrigir e me sinto encarnar suas personagens mais cínicas; converso com a atendente da banca de revistas (não vendem mais jornais), onde compro meus cigarros há muitos anos, e tenho a impressão de ser filmado e editado em tempo real para um público que se considera muito refinado, ao menos enquanto tem acesso à internet.

Talvez seja isso. “A história termina com um carro vazando óleo no fundo de um lago em um ferro-velho abandonado” aponta uma câmera para quem o lê. Se você faz essa leitura com atenção e evita os buracos de negação, é fácil se identificar com as condições patéticas, os pequenos problemas íntimos, acumulados para parecerem grande problemas, e os julgamentos mesquinhos e prepotentes que compõem as relações entre as personagens. Se você faz a leitura em negação, não vai conseguir se identificar, mas continuará sendo uma pessoal horrível.

Livro. Paula Gomes. A história termina Carro abandonado.

Recorte da capa de “A história termina com um carro vazando óleo no fundo de um lago em um ferro-velho abandonado”, de Paula Gomes. Colagem de fotografia de mulher branca com batom escuro e roupa social, com folhas impressas nas mãos, ilustração de um microscópio em preto e branco à direta, de um cogumelo vermelho onde estaria sua cabeça e outros dois cogumelos, laranja e amarelo, ao lado esquerdo.

Já é o quinto parágrafo e ainda não informei o enredo do livro. Imagino que isso configure uma falha da resenha. Sinto que, no momento em que eu tentar sintetizar a história, perderei a atenção de quem me lê e, em combinado, uma pessoa leitora para o livro. É um risco difícil de evitar. Deveria ter escrito uma crônica. Ninguém cobra síntese de enredo em crônicas.

Em “A história termina com um carro vazando óleo no fundo de um lago em um ferro-velho abandonado”, nós lemos trechos do diário que a protagonista passou a escrever, por orientação de sua terapeuta. Sem acreditar que a terapeuta leria qualquer palavra, ela abre suas opiniões grosseiras sobre as pessoas com quem convive no trabalho, no condomínio e na restrita vida pessoal. Junto dessas opiniões, ela nos conta as fofocas do condomínio e sua experiência com o uso de um alucinógeno extraído de “cogumelos mágicos”, a psilocibina.

Felizmente, em nenhum ponto desse livro, há qualquer vestígio de grandiosidade ou exemplos saudáveis para o enriquecimento das relações interpessoais. Também não posso dizer que ele vá no sentido oposto. Não há esforço para pintar as pessoas como dignas de grande desprezo. Elas vivem aí ao seu lado, exageram ao considerar suas vidas relevantes ou irrelevantes e contorcem-se de sofrimento por conspirações para burlar as normas de condomínio.

Eu usei a palavra mesquinho acima. Deve ser isso. Mesquinharia. Isso resume as desavenças e artimanhas que movem nosso quotidiano e conferem um artificial sabor dramático para que a gente engula a vida sem sal. Tentei acreditar que essa mesquinharia era algo próprio apenas de alguns ambientes de trabalho, como o meu, a universidade. Mas, não. Quando paro para pensar, todos os demais ambientes de trabalho pelos quais passei funcionavam da mesma maneira. Nada muito diferente com as famílias. As encenações de boa convivência servem apenas pesar, ou não, a mão na mesquinharia. Isso acontece com o dinheiro, com a autoridade e com as emoções. Amarrar miséria é a regra básica das relações sociais.

Tudo bem, é mais fácil perceber isso quando falamos sobre espaços que conhecemos e frequentamos. A intimidade e a experiência ajudam a rir da iminência e da insignificância dos desastres do dia a dia. É assim com os episódios de “A grande família”. A gente se reconhece e consegue rir da família que nos representa. É assim com “Os normais”. É divertido, contanto que não seja comigo. Nessa mesma lógica, há prazer em dar palpites e criticar as péssimas decisões da vida amorosa de amizades, colegas, pessoas conhecidas e desconhecidas. O ponto de vista permanece: você pode se enganar ou aceitar que comete e cometerá os mesmos erros. É assim com o trabalho e, nesse caso, a coisa dobra-se sobre si, pois qual a razão para respeitar seu ambiente de trabalho além das aparências? Por isso, sinto prazer eu falar mal e ler ridicularizações do meu ambiente de trabalho.

Não há cabeça universitária que esteja a salvo dos mais ignóbeis julgamentos. Esse é um meio cuja única diversão é a fofoca e a conspiração. Experimente. Invente um nome para um professor fictício e comece a dar detalhes sobre a vida dessa pessoa em sala de aula. Você nunca receberá mais atenção do que nesse momento. Tem alguém nessa universidade que se dedica, com afinco, a estragar todos os computadores em que toca. Se eu encontro o computador estragado e pergunto para o professor que usou a sala antes de mim, ele dirá que já estava assim. Sigo a sequência até voltar para o momento em que eu usei a sala, na semana anterior, e todos disseram que já estava assim. Como não querer frequentar o prédio fora do meu horário de trabalho para descobrir quem é o infeliz? Poderia subornar um aluno com uns dois pontos e meio para me ajudar na investigação. Isso deve até contar na carga horário de iniciação científica.

Mesmo depois de cinquenta anos de docência e pesquisa, essas pessoas ainda se comportam como se estivessem em uma competição pessoal para provar que são os alunos mais inteligentes e dedicados da escolinha. Quando não tiram nota 10, culpam o sistema, as panelinhas, atacam e sabotam colegas, inferiorizam o resto da sociedade, choram no banheiro e vestem o papel de heróis perseguidos pela mediocridade dos invejosos que não os compreendem. Não consigo diferenciar a disputa por uma sala vazia entre dois laboratórios de pesquisa em saudável funcionamento e a etiquetagem de potes para evitar o extravio de marmitas. Esse exagero dramático só pode ser irritante ou engraçado. Ou pode ser os dois.

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