[resenha] Salmo para um robô peregrino, de Becky Chambers

Salmo para um robô peregrino. Becky Chambers. Capa.

Recorte quadrado da capa do livro. Por toda a capa, ilustração de uma trilha de terra, passando por várias flores e moitas. Na parte superior esquerda, andando por essa trilha, um robô. Na parte inferior esquerda, um monge sentado nos degraus de uma carruagem. No centro, o título: “Salmo para um robô peregrino”. No centro superior, o nome da autora, Becky Chambers.

CHAMBERS, Becky. Salmo para um robô peregrino. Tradução: Fábio Fernandes. São Paulo: Editora Morro Branco, 2022.

Texto de Rodrigo Hipólito

Nunca conhecemos nada além de uma vida de design humano, desde nossos corpos até nosso trabalho e os edifícios em que estamos alojados. Agradecemos a vocês por não nos manterem aqui contra nossa vontade, e não temos a menor intenção de desrespeitar sua oferta, mas é nosso desejo deixar suas cidades completamente, para que possamos observar aquilo que não tem design: a vastidão selvagem intocada. (Piso-AB #921)

Tudo o que li de Becky Chambers me encantou. Já escrevi resenhas para os três primeiros livros de sua série mais conhecida, a “Andarilha”: Um longa viagem a um pequeno planeta hostil, A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada e Os registros estelares de uma notável odisseia espacial. É provável que eu continue a leitura dessa série e espero que os demais títulos sejam traduzidos para o português. Por essa relação prévia, não evitei criar expectativas para a leitura de “Salmo para um robô peregrino”.

A tradução dessa novela para o português apresentou alguns desafios[1] e, felizmente, ficou a cargo de Fábio Fernandes. Quem quiser saber mais sobre o processo de tradução, pode escutar o episódio 58 do Viva Sci-fi, podcast do qual o Fábio Fernandes faz parte. Próximo a esse episódio, o Viva Sci-fi publicou algumas análises sobre capítulos do livro “Arqueologias do Futuro”, de Frederic Jameson, que nos ajudam a compreender a história e a relevância de narrativas utópicas. Deixo, também, a recomendação do episódio 156 do Suposta Leitura, no qual falei com Lucas Mota e Anna Raíssa sobre o objeto desta resenha.

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Em “Salmo para um robô peregrino”, nós acompanhamos parte da jornada de monge Dex. Diferente do mais comum em muitas histórias de ficção científica, a jornada de Dex não envolve batalhas violentas ou inimigos encarnados em corpos alienígenas. Trata-se de uma jornada de autorreflexão. Ainda assim, os conflitos apresentados não são apenas internos, pois refletem questionamentos e dificuldades próprios dos modos de vida estabelecidos nesse mundo ficcional.

Se você perguntar a seis monges diferentes a qual domínio divino pertence a consciência dos robôs, receberá sete respostas diferentes.

Não sabemos se estamos em uma Terra futura, em uma versão alternativa de nosso mundo ou em outro sistema estelar. Panga a lua de um planeta aleatório, com uma só cidade e uma relação, aparentemente, harmônica com a natureza. Essa relação é fruto de um passado de crises, quando Panga esteve diante de um advento que mudaria o destino dessa humanidade: a consciência das máquinas. O fim da Era das Fábricas se deu com o Despertar. Com consciência, os robôs abandonaram o convívio com a humanidade e se exilaram na natureza selvagem.

Muito tempo depois desse acontecido, irme Dex sente uma irresistível vontade de ouvir o som de grilos, que não existem na Cidade. Elu abandona o jardim do qual toma conta e muda sua vocação para monge do chá. Montade em uma bicivaca, um misto de carroça, bicicleta e casa, Dex sai pelas estradas de Panga para ouvir e servir chá.

Por mais que circule até se tornar competente em sua nova função e torne-se do agrado da comunidade, Dex não encontra o som dos grilos em nenhum vilarejo. Essa inquietação leva irme Dex além dos limites estabelecidos desde a época do Despertar. Fora desses limites, as estradas nunca mais receberam manutenção, há todo o tipo de animais e, como elu logo percebe, robôs selvagens.

O encontro com Esplêndido Chapéu de Musgo Sarapintado (sim, esse é o nome do robô) muda os rumos de Dex. Sua jornada de autorreflexão torna-se uma jornada de enfrentamento entre a sua condição humana e a condição de todas as demais criaturas com as quais elu deve dividir o mundo onde vive. Enfrentamento, nesse caso, não como uma espécie de conflito competitivo, mas como o ato de estar diante do Outro e aceitar sua existência para além das expectativas e necessidades do Eu.

Chapéu de Musgo quer aproximar-se do povoamento humano e procura, em Dex, informações que levam nosse monge a observar sua comunidade com distanciamento e estranheza, o que nunca tinha feito. De início, a companhia de Chapéu de Musgo lhe é desagradável. Mas, na medida em que percebe que a natureza selvagem é o habitat do robô e não o seu, parece inevitável o surgimento do companheirismo entre a máquina anfitriã e ê monge invasore.

Com foco no desenvolvimento leve de personagens e diálogos formalmente limpos, envolventes e perspicazes, Becky Chambers explora as dúvidas que ladeiam a constante tentativa de encontrar nosso lugar no mundo. É fácil se identificar com Dex e sua batalha interna com sentimentos de incerteza e desejos por algo mais. Junto a isso, Chapéu de Musgo ganha nossa simpatia com poucas linhas e é capaz de nos fazer observar com mais atenção e cuidado até os objetos mais corriqueiros a nossa volta.

Outro aspecto do livro que não deve ser ignorado é a sua forte mensagem sobre nosso papel no ecossistema que exploramos. Em “Salmo para um robô peregrino”, a humanidade é mostrada como aquilo que não deveríamos deixar de ser: mais um grupo de criaturas que têm o direito de viver em paz nesse planeta.

É provável que muita gente considere “Salmo para um robô peregrino” uma história muito curta e isso gere uma cobrança por maior detalhamento desse cenário que podemos apenas observar por uma fresta. É bom pensar nisso como um elogio. Uma grande variedade de elementos são pincelados pela autora, com respeito pela nossas capacidades de imaginação e abstração e pela história que é contada.

É possível elucubrar sobre como está organizada a Ordem de monges, sobre as demais funções das pessoas que habitam Panga, sobre o que ficou de fora dessa cronologia, entre a Era das Fábricas e o tempo presente, ou sobre os significados das divindades reverenciadas. Em grande medida, é assim que nós passamos pelo mundo fora da ficção. Nossos afazeres, preocupações altruístas e mesquinhas, desejos e medos, necessidades básicas e supérfluas; tudo o que nos envolve e ocupa nossas emoções e pensamentos, permite que possamos viver sem a necessidade de absorver todos os detalhes da realidade. Como diz o lugar-comum: não há manual de instruções para a vida.

“Salmo para um robô peregrino” escapa da trilha de tornar-se um manual de instruções ou uma enciclopédia de sua realidade inventada. Obviamente, isso condiz com a fluidez de sua prosa. Talvez, essa característica contribua muito para evidenciar a sua condição de utopia.

O robô pensou.

— Eu também tenho desejos e ambições, Irme Dex. Mas, se eu não realizar nenhum deles, tudo bem. Eu não iria… — Aquilo acenou para os cortes e hematomas de Dex, para as picadas de insetos e roupas sujas. — Eu não iria me machucar por conta disso.

Dex virou a caneca várias vezes nas mãos.

— Isso não incomoda você? — perguntou Dex. — O pensamento de que sua vida pode não significar nada no final?

— Isso é válido para toda vida que observei. Por que me incomodaria? — Os olhos de Chapéu de Musgo brilharam com intensidade. — Você não acha que a consciência por si só é a coisa mais emocionante? Aqui estamos, neste universo incompreensivelmente grande, nesta pequena lua em torno deste planeta incidental, e em toda a existência deste cenário, cada componente foi reciclado repetida e novamente em configurações infinitamente incríveis, e às vezes, essas configurações são especiais o bastante para se poder ver o mundo ao redor. Você e eu — nós somos apenas átomos que se organizaram da maneira certa, e podemos entender isso sobre nós mesmos. Não é incrível?

Apesar da definição mais simples de utopia apontar para um mundo ideal, uma sociedade perfeita, repleta de felicidade e sem conflitos, basta parar para pensar um minuto no assunto que, logo, percebemos que não se trata disso. Não é possível eliminar os conflitos, pois a qualidade e a variedade deles estão na base do convívio, não apenas entre humanos, mas de qualquer ecossistema. Quando escapamos da definição mais inocente e simplista das aspirações utópicas, podemos compreender como o seu exercício é fundamental para a nossa época. É certo que necessitamos de utopias para manter a vida em movimento.

De muitas maneiras, o século 21 tem sido marcado por uma sensação de incerteza e turbulência. Avanços tecnológicos rápidos, mudanças climáticas, instabilidade política e agitação social são apenas alguns dos desafios que enfrentamos. Escrever utopias pode nos ajudar a imaginar um mundo onde esses desafios sejam superados e a imaginar o que seria necessário para evitar o erro da fuga de antagonismos.

Nesse sentido, a literatura utópica serve bem como um jeito de colocar sobre a mesa as suposições a respeito do nosso tempo. Ao apresentar uma versão idealizada da sociedade, utopias nos empurram para o enfrentamento dos fatos mais desagradáveis do nosso cotidiano. Em simultâneo, esse tipo de construção ficcional nos incentiva a pensar criativamente e a imaginar caminhos que podem ser imprescindíveis em tempos de crise.

E diferente do que possa parecer, utopias não nos aquietam. Essa espécie de exercício imaginativo nos localiza em uma perspectiva do que é possível e alcançável a curto, médio e longo prazo. Utopias convidam para a ação. Se ainda não ficou explícito: a perspectiva de uma vida melhor nos dá esperança sem nos iludir com promessas de perfeição. Utopias têm o poder de se sobrepor ao medo do novo. Ao fornecer uma visão esperançosa e otimista do futuro, a literatura utópica nos alimenta com a coragem para imaginar e abraçar um mundo diferente.

[1] A tradução enfrentou uma realidade ainda não frequente na literatura brasileira: o uso de “Linguagem neutra”. Para quem precisar de mais informações sobre o “padrão elu”, acesse o Guia para linguagem neutra, de Ophelia Cassiano.

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