[crônica] A ausência da síntese ou Sim, eu senti falta

"Map", Qiu Zhijie, 2014.

“Map” [detalhe], Qiu Zhijie, 2014.

Surpresa ao notar que o cobrador do ônibus (que era a cara do André Ramiro) lia “Grande Sertão: Veredas” enquanto dava boa tarde sem sorrir. E já estava no finalzinho do volume único. Aquele calor luminoso que te faz perder a fome e o sujeito lia.

Qual o problema do cobrador ler um maldito livro? Por que raios haveria você de se surpreender? Você lê, ele não?

Pode ter caído naquela modorra de aparências, da qual lhe acordam com tapinhas cheios de segundas e terceiras intenções. Então qualquer surpresasinha soa como cinema de primeira linha.

Caiu não caiu não caiu ou caiu? O fato é que nunca viu um maldito cobrador a ler um maldito volume único e ainda por cima do Guimarães Rosa.

Deixa o rapaz se surpreender um pouco sem ser obrigado a subscrever interesses de classe!

***

Mais tarde na fila para aquela mostra montada na antiga maternidade Matarazzo, um leitãozinho de óculos redondos responde para o pai que estão ali porque ele viu o anúncio na TV. A criatura tem entre seus 8 e 10 anos e logo chegará na idade em que não gostar de futebol é um crime.

A mãe pega pirraça até conseguir estourar o balão do filho e o pai insiste de modo constrangedor em explicar situações para a esposa e a criança. Os cruzamentos genéticos nos surpreendem.

Chegam próximos da área gradeada, olham para dentro e aparecem os primeiros trabalhos.

– Essa obra, meu filho, reflete a violência da natureza. É a incontornável crueldade da natureza, que também é a violência humana para com a natureza.

– Acho que não é não, pai.

– O artista quis fazer uma crítica, meu filho. Olha a expressão das cabeças, o sofrimento, o ouro, que significa riqueza material e a oposição entre a madeira cortada e a madeira viva. É pra nos lembrar de que a natureza persiste em tudo.

– Pai, acho que não é isso não.

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Enganaram-se. A bienal do vazio não foi a 28ª, mas sim a de 2014. Mais vazia que todas as outras. Dá a impressão de que o dinheiro foi embora, quiseram aproveitar a estética da precariedade, sobraram apenas os produtores de feiras escolares repetentes do ensino médio e recarregaram o bilhete único deles em troca de algumas ideias de como representar o amor, o desamor e o Deus dos oprimidos (com Paulo Freire sentado à direta do trono).

Isso foi um pouco pesado como descrição, não?

Talvez, mas perder boa parte do caminho bombardeado por “pedidos de palavra” para “pedir a palavra” é cansativo.

Deveria haver um gnomo fluorescente na entrada, ao lado do maravilhoso mapa emparedado de Qiu Zhijie, para nos avisar de que deveríamos ir direto ao Bloco C.

Chegar em “The Incidental Insurgents”, de Abbas e Abou-Rahme, ou “Fuego em Castilla”, de Val del Omar, com os pés cheios de calos e a cabeça tomada pela correção de provas do ENEM é, no mínimo, desrespeitoso com os artistas e com o público.

Considere que dois terços do espaço está vazio, ignore as coisas que mais existem, e será uma mostra pronta para o debate. Mas, com aqueles que gritam antes do começo da conversa, não há argumentação possível.

Para a próxima, talvez seja o caso de manter a esperança no convite de “pessoas más” para a curadoria… ou, se a vida seguir esse fluxo, de a coisa toda ficar parada.

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Outro dia fui cumprimentar uma amiga e ela me passou um santinho com “as propostas”. Fiquei constrangido.

É sempre ruim não poder usar as palavras que ricocheteiam na cabeça.

É péssimo ter de justificar a mentira e o silencia pela fragilidade e rigidez do outro. Os outros, pois o plural é mais coerente, já que essa fragilidade é construída por uma corrente de medos e culpas.

Não lhe digo que a verdade está lá fora… e que seu mundo caiu naquela modorra, porque isso iria lhe magoar e magoar todas as pessoas as quais você tem medo de magoar. Então, lhe entrego uma caneta hidrocor, lhe tomo pela mão e lhe acompanho até o vidro da porta para que escreva palavras avulsas que a faxineira limpará com afinco na semana que vem.

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