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Texto de Fabiana Pedroni
Não sei exatamente quando começou. O que deveria ficar entre-páginas saltou dos cadernos de anotações para o cotidiano. Uma bolha de sabão deixou de ser uma brincadeira com crianças e cachorros para virar, também, uma vivência em Cao Guimarães. Uma lichia tornou-se um sabor de rosa e a feijoada, um transporte para uma cidade hoje já distante. Um amigo me disse que esse processo poderia ser uma espécie de autoetnografia. Em algum momento, o pesquisar tornou-se viver.
“Toda descrição é, de fato, uma interpretação, no sentido de que é a seleção de informações e atribuição de significações a partir de uma memória e de um imaginário individual e coletivo. A crise da representação, longe de ver a descrição como um simples exercício de transcrição e de adequação entre as palavras e a realidade, impõe firmemente a presença e a subjetividade do pesquisador até fazer deste o objeto central nos estudos auto-etnográficos. De fato, se a pessoa que conduz a investigação é indissociável da produção de pesquisa, por que, então, não observar o observador? Por que não olhar a si mesmo e escrever a partir de sua própria experiência?”[1]
Construir pesquisa de modo poético e vivencial. Como posso falar de ornamento, de livros, sem me esbarrar em tantas memórias? Por que não deixar os esbarrões propositais de lado para tornar-se mergulho?
A autoetnografia provém da antropologia. O termo foi usado pela primeira vez por David M. Hayano (1979). Em uma concepção tradicional de pesquisa etnográfica, seria possível manter certo afastamento de uma comunidade ou fenômeno estudado, de modo a descrever o mais fielmente possível os acontecimentos e as formas. Na autoetnografia, mais do que a aproximação, defende-se que o sujeito seja o ponto de partida, aquele que está dentro do fenômeno.
Como método, a autoetnografia se efetiva através de cinco eixos de trabalho: (i) o olhar para si, que é a consideração de que o pesquisador não poderia, ainda que assim desejasse, excluir-se do ambiente que o rodeia, de modo que deve aceitar-se como agente dos fenômenos estudados; (ii) o forte teor reflexivo, que é a constante consideração das relações entre os agentes do fenômeno estudado, com a pontuação de que tal reflexão é exercida pelo observador; (iii) o trabalho engajado, que é o posicionamento inevitável do pesquisador como agente envolvido num fenômeno para o qual dispensa desejos e que será influenciado pela realização ou não de tais desejos; (iv) a explicitação da vulnerabilidade, pois a narrativa pessoal, o teor emotivo, os desejos, vontades e frustrações do pesquisador passam a ser dados de trabalho, logo, não devem ser escondidos da percepção do leitor/espectador; e (v) a rejeição de conclusões, pois o encerramento das possibilidades de análise do fenômeno seria impraticável e não é objetivado quando se processa uma análise antipositivista, mais construtiva e estrutural.[2]
Por estar dentro de mim e construir-se a partir da minha vivência, não sei bem quando começou…
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Uma pausa para escutar o som da escrita e dar um mergulho
Texto de Fabiana Pedroni que compôs o episódio de férias do Não Pod Tocar.
Eu estava na fila do supermercado, você num restaurante italiano, na Itália. Eu estava numa fila de banco, e você numa trilha em algum monte europeu. Eu, a acompanhar minha avó para o banho e você a me mandar fotos de sobremesas. Se eu continuar a lista, vai entender que esta não é uma narrativa de novelas clássicas, com vingança e inveja. Mas, uma narrativa daquelas que se cria memórias. A escrita tem nos aproximado, e, justamente por isso, você escuta este áudio. Talvez você sentisse falta de minha voz, depois de tantas mensagens. Quando você grava seus passos e me envia, quando eu ouço os cascalhos, eu consigo me imaginar tropeçando, xingando as pedras como xingo mentalmente pessoas enroladas do supermercado. Esse tipo de conexão precisa ser valorizado. Quis gravar minha voz, mas não queria dizer bobagens do dia a dia. Não poderia apenas dizer “será que hoje vai chover?” ou “deveria ter ido comprar pão, mas tive preguiça”. Que sentido teria, uma mensagem assim tão desconexa? Então, selecionei um de meus textos que sinto saudades. Textos geram memórias e impressões, não só para o leitor, mas também para o escritor. Aquele que escreve pode esquecer de seus textos, e sentir falta deles. Eu sinto falta de alguns. Há uns anos que não volto a ler-me. Se era para gravar minha voz e me enviar para você, que fosse com algo mais significativo que uma lista de supermercado. Então, sigo com a leitura: “Sangue azul. Há dias em que as memórias nos acompanham como fantasmas. Você acorda pelo lado errado da cama, encontra pés já desconhecidos e não sabe quais são suas roupas, pois já não reconhece o próprio guarda-roupa. Na esquerda ou na direita? Quando foi que tudo tomou outra direção? E você segue, continua as tarefas como se não sentisse presenças fantasmáticas.”[3] – Humm, como assim? Essas frases fazem tanto sentido quanto narrar extrato de tomate. De fato, memórias podem ser fantasmas, mas, presenças fantasmáticas parece mais título de obra artística que um estar perdido dentro de sua própria casa. Insisti na leitura mais algumas vezes, mas vou lhe poupar dos engasgos. Já percebi que isso não daria certo. A conversa de elevador certamente seria mais cativante. Não que o texto seja em si ruim, apenas, não diz mais o que a memória do texto dizia. Sem um texto e com receio de encontrar um outro eu que já não sou, será mais fácil escrever do zero, ou, fazer aquilo que mais gosto quando não sei que caminho tomar – aleatoriedade. Vou escolher um livro, abrir uma página aleatória e ler um trecho.
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“Não sei por que Rick pensou que o coelho podia voar. Ele sabe que não pode. Sabe que eu não posso. Deve ter achado que alguma coisa o impediria de cair ou nunca o teria largado.
Quando o pai de Rick chegou e lhe deu aquele coelho, eu já não tinha notícias dele por três anos. Três anos ausente e de repente ele está na varanda da minha casa com um par de botas surradas, dizendo que tem um presente para o menino. Toc, toc, toc. Pus a mão na porta de tela entre nós e a mantive fechada. Eu não lavava o cabelo há dias.
Eu disse a ele para voltar de onde tinha vindo. Ele pôs a gaiola no chão e pude ver uma coisa branca se mexendo de um lado para o outro. Me perguntei se ele ainda tinha as chaves da minha casa que mandei fazer para ele. Eu não ia me irritar até que ele começasse a se afastar.
— E aí – gritei nas costas dele. — Como estou?
— Bem — disse ele, mas ele nem ao menos se virou. — Você parece bem.”[4]
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“É à memória que se recorre com tais períodos, enriquecidos por orações subordinadas emaranhadas umas nas outras e recheados, como gansos assados com maçãs, com essas frases que uma pessoa não pode enfrentar sem antes consultar o relógio. Mas a memória desempenha assim um papel que deveria caber ao entendimento e à capacidade de julgar, cuja tarefa acaba sendo dificultada e enfraquecida.[5] Pois períodos desse tipo oferecem ao leitor frases cortadas ao meio, que sua memória deve acumular e conservar, como os pedacinhos de uma carta rasgada, até que aquelas metades sejam completadas pelas que chegarem depois, para só então fazer sentido. Por conseguinte, ele precisa ler até um certo ponto sem pensar coisa alguma, apenas memorizando as informações todas, com a esperança voltada para o final, que lhe dará alguma luz sobre o que foi lido e possibilitará que tenha algo para pensar”.[6]
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“Nenhum objeto está numa relação constante com o prazer [Lacan, a propósito de Sade].[7] Entretanto, para o escritor, esse objeto existe; não é a linguagem, é a língua, a língua materna. O escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe [remeto a Pleynet, sobre Lautréamont e sobre Matisse]: para o glorificar, para o embelezar, ou para o despedaçar, para o levar ao limite daquilo que, do corpo, pode ser reconhecido: eu iria a ponto de desfrutar de uma desfiguração da língua, e a opinião pública soltaria grandes gritos, pois ela não quer que se ‘desfigure a natureza’”.[8]
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“— Deixa pra lá, disse o homem, é uma coisa complicada e num dia como este não vale a pena complicar a vida, por que não vai dar um bom mergulho antes do almoço?” [9]
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Não podemos voar, mas ficaremos bem.
Junte pedacinhos de memória, que o voo ganha sentido.
Um voo de prazer pela escrita, e pela escuta.
Mas não compliquemos, apenas, tenha um bom mergulho.
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[1] FORTIN, Sylvie. MELLO, Helena Maria (Trad.). Contribuições Possíveis da Etnografia e da Auto-Etnografia para a Pesquisa na Prática Artística. Revista Cena, N. 7, 2009, pp.77-88, p. 82. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/cena/article/view/11961/7154>. Acesso em: 18 fev. 2020.
[2] JONES, Stacy Holman; ADAMS, Tony E.; ELLIS, Carolyn. Handbook of Autoethnography. London: Routledge, Taylor & Francis Group, 2016.
[3] Disponível em: https://notamanuscrita.com/2016/06/13/sangue-azul/
[4] TINTI, Hannah. Verdadeiros animais. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 85.
[5] No áudio, leio “dificultada e enriquecida”, ao invés de “enfraquecida”, talvez, pela minha insistência em achar enriquecimentos na dificuldade.
[6] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2011, pp. 117-118.
[7] Algumas partes do texto foram omitidas na leitura, e aqui colocadas entre colchetes. Assim como se omite as referências dos textos de origem, quase que para irritar Schopenhauer, aqui, come-se as palavras para não sobrecarregar sua sobremesa que pode estar a comer no momento desta escuta.
[8] BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 46.
[9] TABUCCHI, Antonio. O tempo envelhece depressa. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 61.
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