
Imagem de capa. Mi vê um café. Fabiana Pedroni. Fotografia, 2020.
Texto de Fabiana Pedroni
O buteco do seu Geraldo é um dos mais conhecidos pelos moradores do centro. Eu costumava passar por ele quando ia ao trabalho. Não importava o horário, sempre tinha alguém lá dentro, a ouvir as histórias do Gê, ou na porta, fumando um cigarro. Esse causo aconteceu numa manhã barulhenta e meio corrida. Saí de casa com pressa, não queria me atrasar, mas também não queria chegar com fome na entrevista. Parei no buteco pra comer a melhor coxinha do mundo. Saudades da dona Gê.
Foi entre uma mordida e outra que entrou um senhor, todo empacotado no terno. Se o Seu Geraldo fosse mafioso, ali mesmo eu teria morrido. O ternudo olhou todos os cantos antes de se aproximar do balcão. Ele estendeu a mão, para chamar a atenção do seu Gê, como se fosse possível ignorar aquela presença tão destoante. O senhor abriu a boca e deu sentido ao gesto. Ele precisava de toda a atenção porque falaria baixo, com calma, pra arrastar mais de metro a preguiça da minha manhã agitada.
— Dê-me um café — Assim como o seu Gê, eu fiquei ali olhando tamanha garbosidade, ou arrogância.
— Que phyno — sussurrei, para mim mesma, antes de sair do buteco e ver seu Gê passar o café num copo americano. Cheirinho bão.
No caminho para a entrevista de trabalho, fiquei pensativa. Lembrei-me das tantas vezes em que meu pai brigou comigo por não aceitar o verbo “aceitar”. Odiava dizer “você aceita?” Se a pessoa quer comida, ela qué e pronto.
Hoje, compreendo que várias situações em minha vida poderiam ser evitadas se eu percebesse que o que acontecia era preconceito linguístico. Tanto na minha insistência com o “qué?” quanto com meus julgamentos errados sobre a fala alheia.
— Você está querendo dizer que o senhor de terno sofreu preconceito linguístico? — Essa é a pergunta que espero que você tenha se feito assim que leu o parágrafo anterior. Não se tem preconceito linguístico contra aquele que detém o poder sobre a palavra dominante, aquele que dita as regras. A fala julgada arrogante foi inadequada para ser dita dentro de um bar. Mas, dentro de sua inadequação, ela acarreta pouca ou nenhuma consequência para o sujeito que a diz. Afinal, ele conseguiu o café.
Agora, imagine se na minha entrevista de emprego eu tivesse dito “Aí chapa, ruma um trampo pra mim aí”. Certamente, a consequência seria enorme. Eu não conseguiria o emprego e não melhoraria meu poder aquisitivo. Bom, eu não consegui aquele emprego, mas por outro motivo, por ser mulher.
O preconceito linguístico é um fenômeno complexo em nossa sociedade. Um preconceito nunca vem sozinho, está enraizado em outros problemas sociais e históricos. O causo, aqui contado, foi baseado nas frases “Dê-me um café” e “Aí chapa, ruma um trampo pra mim aí” presentes no artigo do professor Valdir Heitor Barzotto, de título “Nem respeitar, nem valorizar, nem adequar as variedades linguísticas”.
No artigo, assim como no início deste texto, as duas frases ilustram como a questão da adequação linguística é um problema com graves consequências sociais. Ele defende que não devemos adequar uma variedade linguística, pois, ao fazer isto, reforçamos a desigualdade de consequências que recai sobre diferentes grupos. Além disso, para se propor uma necessidade de adequação linguística é necessário que uma variedade se julgue a adequada frente a outra inadequada.
O julgamento de um sobre outro é também a raiz para o estranhamento em se dizer que uma variedade linguística deva ser respeitada e/ou valorizada. Para valorizar uma variedade linguística, é preciso que um outro, externo a ela, diga que ela não tem valor e que precisa ser valorizada. Aquele que detém o valor é que dirá “valorize” e “respeite”. Barzotto apresenta a própria Constituição, de 1988, (Título I – Dos princípios Fundamentais, Art. 3º. Parágrafo IV) para afirmar que o respeito é óbvio e previsto por lei, não precisa que alguém (humano) se coloque acima de uma variedade linguística para exigir seu respeito.
Além disso, ele explica que o verbo “respeitar” deixou de ser associado às exigências constitucionais de “não causar dano a” (promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação) para significar “suportar, aturar ou tolerar”. Tolera-se que um falante fale de tal forma, mas, desde que seja dentro de um grupo isolado, sem afetar aqueles que julgam a variedade dominante.
Se não devemos respeitar, nem valorizar, nem adequar as variedades linguísticas, porque cada um dos três verbos possui problemas em sua significação histórico-social, o que devemos fazer? Barzotto responde: incorporar. Quer dizer, juntar num só corpo, reunir, dar unidade. Perceba que dar unidade não é o mesmo que homogeneizar, mas é uma forma de evitar que se façam julgamentos negativos, que se retire o valor de uma variedade, para logo em seguida tentar, de forma vazia, dar-lhe valor.
“Para que não se trabalhe apenas com fragmentos da língua portuguesa, fazendo uma única variedade tomar o lugar da língua, contribui bastante a idéia de corpo presente no verbo incorporar e indicado em 1. dar forma corpórea a [Barzotto usa, nesta parte de seu texto, definições do dicionário para a palavra incorporar]. Este significado pode auxiliar a pensar metaforicamente em corpo da língua, composto por todas as suas variedades. Por sua vez, o significado presente em 2. Admitir ou receber em corporação. permite que se amenize os efeitos discriminatórios, pois os verbos admitir e receber parecem não comportar traços de significado ligados à falta de valor.
Admitindo-se ou recebendo-se as variedades na sala de aula [de onde parte o trabalho de Barzotto], sem hierarquização ou valoração, respeita-se melhor a Constituição, pois evitam-se os danos causados por julgamentos negativos como o de atribuição de uma falta de valor ou de inadequação.
Tanto 3. Reunir (diversas companhias mercantis) em uma só. como 4. Juntar num só corpo; dar unidade a; reunir; ou 6. Unir, reunir, juntar, em um só corpo ou um só todo. Corroboram a idéia de corpo, permitem pensar que a unidade da Língua Portuguesa é garantida pelas suas variedades.” (BARZOTTO, 2007, p.96)
Desse modo, o uso desses verbos faz parte de toda uma argumentação que se desenrola para entendermos por que cada sujeito e sua língua é importante socialmente: porque formamos uma unidade variante. Nós formamos uma unidade que nunca deveria deixar um determinado grupo como dominante.
Notas:
BARZOTTO, Valdir Heitor. Nem respeitar, nem valorizar, nem adequar as variedades linguísticas. Revista Ecos. v.2, n.1, p.93-96, 2007. Disponível em: link.