Texto de Rodrigo Hipólito
No começo deste ano, passei a participar de um grupo de leitura de contos nacionais de ficção especulativa. O serial readers, organizado pelo Ícaro de Brito, propõe a discussão de um conto (por mês) de literatura especulativa nacional, que seja publicado em revistas de acesso gratuito. Além de auxiliarem a manter um ritmo de leitura de ficção, os debates sobre cada conto serviram para que alguns incômodos e percepções que tenho na experiência com várias narrativas de fantasia e ficção científica fossem postos em palavras.
Essa pequena introdução está aqui como um alerta de que, nos próximos parágrafos, haverá reclamações justificadas e, talvez, algumas implicâncias. Sim, nós não abandonamos nossas implicâncias quando assumimos posturas críticas. Não existe crítica neutra, por mais técnica e embasada que seja.
Aceitar a presença da pessoalidade, no entanto, não significa individualizar comentários críticos. Quando individualizamos uma crítica, assumimos um risco, muitas vezes desnecessário, de transformá-la em um ataque. Para escapar disso e, ao mesmo tempo, encontrar comentários que sejam mais direcionados ao contexto que gerou este texto, sugiro a leitura do texto Serial Readers #7 — Corpo seco, do José Abrão, escrito pelo Ícaro de Brito.
[auto lembrete de que este não é um texto sobre crítica e corte seco para tratar do tema central]
Como não trupicar quando tentar mesclar elementos nacionais e estrangeiros em narrativas de ficção?
Observem com atenção o uso da palavra trupicar. Esse aviso pode ter sido inútil, pois, talvez, a maioria das pessoas que leram a pergunta acima tenha, quase instintivamente, sublinhado a palavra em sua mente. Essa reação pode ter se dado por já conhecer a palavra e sentir alegria ao encontrar um termo pouco recorrente em textos formais. Também é possível que você tenha parado a leitura por desconhecer essa palavra. Nos dois casos, existe uma estranheza. Em nenhum dos dois casos, a estranheza é negativa.
Estranhar é algo não apenas positivo como necessário para o funcionamento das narrativas fantásticas. Esse efeito pode ser alcançado quando deslocamos elementos de contextos ou criamos contextos que ressaltam elementos de uma realidade. Isso significa que nós não fazemos os elementos de nossas histórias brotarem do zero absoluto.
Por mais alucinatórios que sejam os seres fantásticos, as tecnologias e o rompimento com a física apresentados em uma história de ficção, eles ainda são espelhamentos, representações ou desdobramentos do que pode ser observado em nossa realidade. Isso significa que sim, elfos existem. Isso também é válido para quaisquer mitos que você puder imaginar.
O exemplo dos elfos pode ser trocado por androides, seres interdimensionais, super heróis ou qualquer lugar-comum saturado da cultura de massa, como robôs gigantes. Mitos antigos, mitos contemporâneos. Deuses antigos, deuses contemporâneos. Seja lá o que você decidir usar em sua narrativa de ficção, esse elemento será um espelhamento, uma representação ou um desdobramento do que você pode apreender e com o que você consegue dialogar.
Não se espante por sempre receber as mesmas “dicas” em diversos cursos e oficinas de escrita: pesquise, leia com diversidade, permita que pessoas com outras experiências e sensibilidades distintas leiam o seu texto, não se apegue tanto ao seu trabalho ao ponto de não aceitar modificá-lo. Esses lembretes são fundamentais para quem não está satisfeito em repetir as aparências culturais que te colonizaram.
Se você nasceu e se criou no Brasil, a possibilidade de você ter passado por colonização cultural é enorme. Isso também é valido para qualquer pessoa nativa do Sul geopolítico. Como colonizados, nós assimilamos as culturas branca estadunidense e europeia desde cedo. Essas culturas hegemônicas estão presentes em todos os elementos culturais de massa que nos são entregues.
Nós conhecemos mais sobre o cinema hollywoodiano do que sobre o brasileiro ou latino americano. Nós escutamos música em inglês desde antes de nosso nascimento. Nossos parâmetros estéticos, padrões de beleza, estruturas narrativas e gêneros visuais e sonoros são baseados nas tradições europeias.
Por que raios você acharia que ocorre de modo diferente com a literatura fantástica?
O cânone da literatura fantástica está fundado nas narrativas folclóricas europeias. Os parâmetros estéticos das histórias de fantasia estão fundados na história das representações visuais europeias e nas fórmulas de sucesso hollywoodianas.[1]
Essa fundação é tão profunda que, caso você decida produzir fora dela, você precisará realizar um esforço danado! Você precisaria abandonar toda essa base? Não. Aliás, seria um esforço inútil, dado que a colonização cultural faz parte do que nós somos. Não é possível abandoná-la por completo.
O possível, e recomendável, é ter consciência das relações opressivas que têm continuidade quando nós aceitamos a fácil mentira de que a história da arte europeia e a indústria cultural estadunidense “nos representam”. [2]
Com tal consciência, você pode considerar que seja interessante mesclar elementos de nossas culturas locais e originárias com elementos canônicos, dos quais você não poderia se livrar por completo. Essa é uma conclusão razoável e, caso você tenha chegado nesse ponto, saiba que a mescla também apresenta riscos e complicações. Jamais haverá mescla balanceada entre culturas dominantes e culturas colonizadas.
O problema da hibridização cultural não é algo novo, embora tenha sido, algumas vezes, agredido com voadoras anti-pós-modernas. Foi inevitável que esse debate surgisse, lá pela metade do século XX, dada a condição acelerada do traspassamento midiático que engoliu o globo desde então.
Eu me refiro à hibridização cultural como problema, mas não no sentido de ser essencialmente algo ruim, tampouco ela é essencialmente boa. A hibridização cultural é algo inevitável.
A inevitabilidade, a não neutralidade, o sistema de dominação capitalista/imperialista e a comunicação planetária acelerada fazem com que necessitemos sempre discutir como ocorre essa hibridização. Nesse sentido, ela é um problema.
Foi sobre esse ponto que comentei, recentemente, no grupo dos Serial Readers. Com pequenas alterações, os parágrafos seguintes são a reprodução das mensagens retiradas das conversas no grupo.
Um dos primeiros livros que li sobre o assunto foi o “Culturas Híbridas”, de Nestor Garcia Canclini.[3] Isso foi no começo da graduação. Já faz bastante tempo e, depois disso, encontrei textos que expandiam, criticavam e complementavam as ideias de Canclini. Ele continua a ser uma autor de base. Daí sugerir, fortemente, que quem queira compreender mais sobre mesclas culturais, comece por esse livro.
Uma das coisas que o Canclini evidencia, em “Culturas Híbridas”, com diversos exemplos, é como não é possível mesclar de modo equânime duas culturas e que, mesmo quando isso acontece de modo “orgânico”, nós precisamos considerar outras questões.
Quando lidamos com culturas periféricas, colonizadas e subordinadas, como é o caso do Brasil e tantos outros países do Sul geopolítico, é bem mais delicado falar em mesclas culturais com países colonizadores, centrais e hegemônicos.
Num exemplo esdrúxulo: se você colocar a mesma quantidade de elementos visuais europeus e indígenas brasileiros numa balança e lançá-los numa história, as pessoas lerão essa história como uma história europeia pontuada por elementos indígenas.
Nosso imaginário foi colonizado. Por mais triste que isso seja, não podemos ignorar esse fato ao escrevermos ficção. No momento em que usamos um nome gringo, um jargão estrangeiro, uma paisagem ou descrição de cenário típico da tradição estrangeira, aquilo irá se sobressair no imaginário já povoado por elementos iguais.
Se quisermos fazer essa mescla, teremos que compensar a injustiça história que é a colonização do nosso imaginário e pesar a balança para o lado de cá.
Havia outras mensagens naquela conversa, mas eram específicas a respeito do conto discutido. Como apontei no início deste texto, penso que uma crítica não necessita estar direcionada a um trabalho ou a um artista para que exerça sua função axiológica. Talvez essa espécie de generalização seja até mais interessante.
Certamente, uma grande parcela das pessoas que escrevem ficção especulativa podem decidir não se importar com o problema da hibridização. Tudo bem. Não há surpresa com relação a isso. A dominação epistêmica nos trouxe até aqui. Aliás, grande parte do que ainda se produz como repetição dos lugares-comuns europeus e estadunidenses ainda nos diverte (ainda me diverte).
Para além disso, eu fico feliz de perceber que o público leitor parece se tornar mais exigente com relação a esse e a tantos outros problemas. Mal posso esperar pelas narrativas fantásticas que ainda serão escritas.
Referências
ABDALA JUNIOR, B. (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALMEIDA, M. V. de. (2018). Crioulização e fantasmagoria. Anuário Antropológico, 30(1), 33-49.
BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
CANCLINI, Nestor Gasrcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade; Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2000 (Ensaios Latino-americanos, 1).
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Indústria Cultural, Capitalismo e Legitimação. In: Dos meios as mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 63-89.
[1] Nós conversamos a respeito das fórmulas da cultura de massa em NPT S01E15 – Bird Box, Indústria Cultural e Narrativas Pop.
[2] Um pouco sobre o debate em torno de possíveis perdas advindas da aceitação de que a lógica capitalista domine a cultura você pode encontrar no [texto de processo] Indústria Cultural, Capitalismo e Legitimação, baseado na leitura de MARTÍN-BARBERO, 1997.
[3] Um pouco sobre essa leitura e a respeito de como a hibridização pode afetar as identidades, eu escrevi em “Da transfiguração da superfície cultural”.
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