
Imagem de capa. M83 Andromeda. Fotografia de Nick Franco, junho de 2014. Imagem colorizada da galáxia de Andrômeda, em tons de azul brilhante e branco. Fonte: Wikimedia.org
Chambers, Becky. Uma longa viagem a um pequeno planeta hostil. Trad. Flora Pinheiro. Darkside, 2017.
Texto de Rodrigo Hipólito
Esse é o primeiro livro de uma tetralogia. Mas, você não precisa se preocupar em seguir pelos outros dois volumes para saber o que acontece com as personagens. Não adiantaria. Ainda que haja certa continuidade, os livros são independentes.
E mesmo que você deixasse esse primeiro livro pela metade, o que duvido que você seja capaz de fazer, já seria uma ótima experiência de leitura. Não se trata de receber surpresas de roteiro, acompanhar uma grande trama até o final catártico ou ficar na expectativa de que a autora mate a sua personagem predileta. Não se trata disso.
Com essas negativas, talvez você pense que esse é um livro chato. Nas mãos de outra pessoa, a premissa de “Uma longa viagem…” poderia virar um porre. O que Becky Chambers faz é te puxar para temas delicados e atuais, para um cenário complexo e muito bem estruturado, para a vida de personagens cheias de histórias, as quais você sabe que nunca poderá conhecer por completo.
Rosemary foi enviada para o seu novo emprego na nave Andarilha. Ela lida com burocracia e é isso que aquela equipe precisa. O capitão Ashby demorou para contratar a nova funcionária, mas sabe que isso é necessário, caso queira contratos mais vantajosos na perfuração de atalhos espaciais. Sua equipe é boa nisso. Inserir mais uma pessoa no grupo é arriscado.
Com Rosemary, a Andarilha assume o contrato para perfurar um túnel que ligará a Confederação com o planeta Hedra Ka. Os toremi ka são uma espécie que vivem fascinados pelo estabelecimento de padrões. Isso os torna perigosos e com um eterno conflito interno em sua sociedade. Até então, os toremi ka estiveram isolados. Aquele será o primeiro atalho perfurado para a sua área da galáxia. Isso significa que a única maneira de chegar lá será através de uma longa viagem.
Percebam a simplicidade da premissa. Uma nave precisa fazer uma viagem longa para executar um serviço perigoso. O foco, no entanto, não está nos riscos do serviço, mas na viagem, como o título do livro indica.
Chambers nos permite acompanhar essa viagem e o dia a dia da Andarilha. Nós participaremos das refeições, dos pequenos desentendimentos, das conversas engraçadas e do trabalho árduo. Nós conheceremos um pouco da história de vida de cada personagem, saberemos como funciona a sociedade de cada espécie e qual o papel da humanidade na Confederação.
Enquanto essa aproximação ocorre, nós nos apegamos às personagens, descobrimos e presenciamos as soluções para os seus conflitos íntimos, assim como o aparecimento de novos problemas. Aquelas pessoas não são militares, figuras heroicas, grandes líderes ou escolhidos pelo destino. Se trata de gente que trabalha, tenta sobreviver, viver seus amores, sarar suas memórias e enfrentar um dia após o outro, se possível, com alguma diversão.
A maior parte da narrativa se passa no interior da Andarilha. Apenas a descrição da nave e sua exploração interna já seriam o suficiente para deixar a história interessante. Além da nave, conhecemos alguns portos e planetas pelos quais passamos. A humanidade é uma integrante recente da Confederação. Isso significa que nem todas as outras espécies estão habituadas com os costumes humanos. Somos apenas uma curiosidade em um mundo repleto de espécies com formas, tradições e modos de vida os mais diversos. Ou seja, que não são os seres humanos que salvarão o universo.
Em alguma medida, os seres humanos presentes na trama se esforçam para se desculpar por alguma coisa. Ashby sabe que a humanidade quase desapareceu por conta de sua estúpida violência. Ele se recusa a pegar em armas mesmo em situações em que tudo indica essa reação. Corbin, o cultivador de algas da nave, é amargo, ranzinza e desagradável sempre que tem oportunidade. Sua função é essencial para o funcionamento da nave e ele sabe disso. O seu isolamento e dificuldade de receber e demonstrar afeto são quase um grito de medo. Rosemary guarda um segredo do qual se envergonha. Por isso, o novo emprego é uma nova vida. Mas, a solidão de um segredo pode consumir cada minuto desse recomeço.
É através de Rosemary que nós somos introduzidos no universo construído por Chambers. Apesar de ter estudado os modos educados de se comunicar com a maioria das espécies que compõem a Confederação, ela não tem experiência prática nessas relações. O estranhamento decorrente do contato entre humanos e outras espécies serve para nos confrontar com dificuldades reais de aceitação de diferenças. A aproximação entre Rosemary e Sissix diz muito disso.
Sissix é de uma espécie fisicamente parecida com dinossauros. Os comportamentos, costumes e a estrutura social dos aandraskianos não apenas são diversos dos humanos, como apresentam discussões que temos, atualmente, sobre nossos modos de vida (família, sexualidade, afeto, etc.). As duas personagens trilham um caminho de compreensão e mútua preocupação, o que faz com que criemos expectativas com relação a elas, frustradas ou não.
Kizzy, Jenks e Lovey compõe um núcleo de personagens que, de início, pode soar apenas como engraçado. Isso faz com que nos apeguemos aos três. Esse apego é fundamental para o impacto dos acontecimentos que atingem toda a tripulação. Há, certamente, um valor especial na relação amorosa entre Jenks e Lovey, a inteligência artificial que habita a Andarilho. Essa é, sem dúvidas, uma das representações mais originais e surpreendentes de uma IA na literatura de ficção científica. A extensão do que Chambers construiu com Lovey tanto extrapola o relacionamento com Jenks, que tem consequências para o segundo volume da trilogia (A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada, 2018).
Lovey, no entanto, deixa mais passagens para que possamos compreendê-la. Afinal, o debate sobre IAs é algo que ocorre hoje. Mais difícil de acessarmos são as realidades de dois (ou três) outros tripulantes da Andarilho: Sienat Par/Sussurro e Dr. Chef. O segundo é o cozinheiro da nave e a figura mais carismática e encantadora de todo o livro. Os primeiros são os navegadores e a única espécie conhecida do universo que é capaz de conceber a realidade em todas as dimensões necessárias para o tipo de viagem espacial ali descrita. As histórias de ambos são de explodir a cabeça e partir o coração.
“Uma longa viagem…” é aquele tipo de livro que faz a leitura ser acompanhada de suspiros reflexivos, mas que não te deixa escapar das páginas. Não estranhe se, no meio das reflexões, você desejar conversar com as personagens.
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