
Imagem de capa. M83 Andrômeda. Fotografia de Nick Franco, junho de 2014. Imagem colorizada da galáxia de Andrômeda, em tons de azul brilhante e branco. Fonte: Wikimedia.org
Chambers, Becky. A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada. Trad. Flora Pinheiro. Darkside, 2018.
Texto de Rodrigo Hipólito.
Desenvolvimento de consciência e emoções em inteligências artificiais, trocas de corpos sintéticos, engenharia genética, destruição decorrente do desenvolvimento de tecnologias voltadas para o conforto de elites, conflitos sociais em ambientes multiculturais, vigilância e controle da vida pública e privada, pós-humanidade, a busca pelo lar e auto-aceitação são temas recorrentes na literatura de ficção científica. Em alguns casos, tais temas são trabalhados com excesso didático, violência, grosseria ou simplificações com intenção de causar choque e acelerar os elementos de ação. Em outros casos, as complexidades e sutilezas dessas discussões aparecem nas brechas do quotidiano. Esse é o caminho trilhado por Becky Chambers, em “A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada” (Dark Side, 2018).
O segundo volume da série iniciada com “A longa viagem a um pequeno planeta hostil” (Dark Side, 2017), não exige que você leia o primeiro livro para compreender a história. Alguém que comece a leitura por “A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada”, ou pelo terceiro, “Os registros estelares de uma notável odisseia espacial” (Dark Side, 2020), terá uma experiência de leitura tão interessante quanto seguir a ordem de lançamento. Não sei sobre os demais volumes da série, pois ainda não os li. Pretendo ler todos, pois esses três primeiros estão entre as melhores leituras da ficção científica atual (não apenas para mim).
Os livros são perfeitos? Certamente não. Assim como em “A longa viagem a um pequeno planeta hostil”, “A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada” possui algumas metáforas capacitistas sobre cegueira. Esse tipo de detalhe poderia ser corrigido em edições seguintes, sem que se altere a narrativa ou mesmo o estilo da escrita. Esse é um erro que se destaca mais nesse caso, pois essa é uma série de livros que trabalha temas vinculados às discussões sobre a multiplicidade de formas de existir.
“A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada” conta a história de personagens que trocam de nome, de vida e mesmo de corpo. Sidra é uma inteligência artificial feita para habitar naves. Ela habitava uma nave, mas precisou ser transplantada para um corpo com forma humana. Boa parte do livro acompanha o seu ruidoso processo de adaptação.
Sidra passa a ter crises de pânico quando está no meio de muita informação, como caminhar por uma feira de rua ou pegar um transporte público. Algumas de suas maiores dificuldades estão em aceitar as limitações do corpo humano, com as quais nós também aprendemos a conviver. Ainda que tenhamos tais limitações desde o nascimento, não acredito que elas deixem de nos incomodar. A sensação de que podemos ser surpreendidos a cada momento, de que não estamos no controle do ambiente a nossa volta, do interior do nosso próprio corpo ou dos nossos níveis de energia, a necessidade de ferramentas externas, a falta da percepção detalhada de um panorama de informações e o livre acesso a quaisquer dados, a possibilidade de se esquecer.
Com seu novo corpo e a obrigação de comportar-se como humana, Sidra precisa lidar com a ausência de controle, decidir o que descartar e o que manter, aprender a ser pequena e frágil sozinha e extensa e forte em família.
Jane passa por dilemas comparáveis, mas com uma história muito distinta. Ela é um ser orgânico, mas concebido de modo artificial. Na sua infância, Jane não tinha estímulos que lhe permitissem desenvolver sua individualidade ou percepção da complexidade do mundo. Um acidente em seu cárcere permite que ela compreenda o absurdo do controle ao qual ela e outras pessoas eram submetidas. A crueldade, a escravidão e a exploração inconsequente de tudo o que é vivo não deixa de existir após a união galáctica de tantas espécies sapientes.
A primeira relação familiar que Jane constrói é com uma inteligência artificial de uma nave obsoleta. Apelidada de Coruja, essa IA cuidará da criança por anos, até que possam fugir do planeta que as considera lixo. Jane precisará cultivar outra vida e, em alguma medida, tornar-se outra pessoa. Confiança e desconfiança serão sensações constantes e é necessário aceitar os riscos para que a vida seja compartilhada.
Becky Chambers intercala os capítulos que contam as jornadas das duas protagonistas. Eu gosto dessa escolha. Há passagens das narrativas de cada uma que me encantam mais e, outras, menos. O que faz com que elas se transformem e encontrem seus ugares no universo não são acontecimentos de grande escala, mas sutilezas próprias das vidas que seguem.
Fazer uma nova amizade, sentir curiosidade por um assunto bobo, experimentar comidas, discutir sem saber quais palavras usar para expressar suas emoções, pedir desculpas depois de entender que fez besteira, criar coragem para remexer memórias e lutar para que elas não te prendam ao passado. O quotidiano pode parecer chato, mas costuma ficar mais interessante quando você encontra algumas pessoas para compartilhar uma admirável xícara de mek.
– [resenha] A vida compartilhada em uma admirável órbita fechada, por Edmar Silva, no Leitor Cabuloso;
– [resenha] A longa viagem a um pequeno planeta hostil;
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