[crítica] A Dissolução dos Arquétipos


Foto Ana 05

Convém que as coisas se percam. Espera-se que todas passem e é mesmo inevitável que assim aconteça. Mas, de alguma maneira, ideias gerais continuam a nos habitar, nos fazer crer numa comunidade que percebe o mundo e é capaz de comunicar essa percepção. Não são apenas informações passadas de geração em geração ou alguma simbologia compartilhada, embora possamos entender como um modo de escrita. Existem formas primordiais acessíveis para todos nós e que se tornam reconhecíveis quando encontram nosso vocabulário particular. O trato com essas formas está presente na experiência realizada pela artista Ana de Sena, na Galeria Homero Massena.

A mostra “Elementares” abriu ao público no dia 29 de julho, mas já havia começado um mês antes, quando Ana mudou-se para a sala expositiva da galeria e deu o primeiro risco sobre a parede. Com um traço fluido e uma composição de ascendência abstrata, o desenho de Ana tomou conta das paredes e do teto. Devemos ressaltar um “D” maiúsculo nesse Desenho, pois o que encontramos nessa mostra é o próprio ato de desenhar.

Para além da elogiável qualidade técnica, o trabalho de Ana deixa surgir eixos de discussão como: a relevância da presença do artista, a continuidade de um acontecimento temporal como obra de arte, o ensino da arte como prática da liberdade criativa e os limites de uma experiência estética comunal.

Rothko dizia que sua obra se abre e simultaneamente se fecha em todas as direções. Jean Baudrillard usa a fala de Rothko para nos lembrar do que é um fragmento: “a menor totalidade possível”. O sentido de fragmento, assim apresentado, nos permite apontar uma das características mais elucidativas de “Elementares”. Quando Ana lançou sua proposta, sob a orientação/parceria do professor e artista Carlos Borges, havia a intenção de levar para o espaço expositivo somente um elemento, o Desenho. Uma economia direcionada para a unicidade era a marca dessa proposta: um desenho, contínuo, em tons de cinza e sem esboço prévio. O desenho não deveria ser separado por outros elementos do espaço, tampouco deveriam ser agregadas peças externas ao ambiente da galeria.

Foto Ana 04

Aos poucos essa proposta inicial decantou-se e deixou a vista apenas o que lhe era essencial. A presença de Ana, a desenhar noite adentro, por mais de trinta dias, sem prever o fluxo das formas, a acumular restos de lápis e pó de grafite, deixou algo mais que o trabalho gráfico. Saber que o Desenho continuou durante o período em aberto para a visita pública e que, ao fim, será coberto por tinta branca, nos faz captar nas formas agarradas às paredes uma dimensão temporal própria do fenômeno. Ao levar sua barraca para dormir dentro da galeria e montar um andaime onde seu corpo passa a se desgastar no trabalho, a artista encontra o fragmento que o espaço lhe concede, a atitude.

Essa menor totalidade possível permitiria uma continuidade em rede, um entrelaçamento que atingiria a todos que travassem contato com ela. Mas, continuidade não seria o termo mais apropriado, gosto mais de “plano-contínuo”. Uma coisa que não necessita de continuar indefinidamente, pois é uma espécie de retenção prolongada, um fechamento de um momento longo, terminado e visto novamente e novamente.

Hoje há um fragmento do tamanho de toda uma sala, um fragmento em que é possível mergulhar e que viverá por um tempo determinado. Após o dia 27 de setembro, “Elementares” se entregará ao limite estipulado não pelo espaço, mas pela necessidade de mudar. Teríamos, então, um retorno ao incorpóreo, ao mundo das ideias.

Parece difícil aceitar que um trabalho de arte seja feito para não permanecer em sua materialidade. Mas, o desafio aceito pela artista não foi o de finalizar uma peça, mas de realizar uma tarefa. Traçar esse percurso por inteiro, acima do risco de falhar, frustrar-se e ter qualquer esperança de que algo mais aconteça. Ao final, a densidade inefável que sustenta as formas cairá. Não haverá mais paredes e o espaço será o limbo.

É necessário atenção, pois a afirmação de que nada restará não deve soar como negativismo insensato. É bom que seja desfeito o feito e que o cansaço se autojustifique. Só tem graça se for possível perder. Só há recompensa se for possível um começo diferente, ainda que arraste todos os começos anteriores.

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