Vez ou outra me deparo com um daqueles livros de palavreado ralo, enredo simples, personagens rasos e sem a pompa ou as intenções que lhe outorgariam a condição de Literatura. Divirto-me muito com essa espécie de livro, ao menos quando a escrita não escorrega para a ficção fastfood sem tempero. É simples diferenciar, dentro dessa gama da literatura, os trabalhos que me levarão para passear dos que abandonarei no primeiro cruzamento com a desculpa de uma reunião ou um descarado “a gente se fala!”. Necessito de uma escrita não funcionalista, de acontecimentos que não obedeçam à conveniência interna da história, personagens com variações expressivas e, no mínimo, que um deles seja suficientemente inteligente para que seus dilemas soem relevantes. Me dê isso e perdoarei o resto.
Encontro fortes exemplos dessa escrita, desprendida de arrogância lírica e erudição piegas, na literatura de ficção científica. Talvez esse gosto seja apenas um reflexo da vontade de fugir às temáticas sentimentalistas, baseadas nas relações amorosas do sujeito francês do século XIX, ainda executadas em profusão e louvadas pelo grande público. Essa fuga engloba, também, a escolha comum de uma solução amena para os conflitos de personagens supostamente realistas: o processo de harmonização entre o(s) protagonista(s) e a moral/ética majoritária. Digo isso sobre a literatura e não sobre a Literatura. Seriam necessárias algumas notas de rodapé para brincar com os escritores-artistas.
A letra pop me agrada. Infelizmente, seus realizadores produzem mais colesterol ruim do que bom. Sempre me lembro disso quando estendo a mão para as ilhas de best-sellers da megastore. Os dedos costumam voltar engordurados. Na última vez dei sorte, recolhi uma folha verde erroneamente alocada e embalada como uma lata de conservantes. Com todas as frases de elogios do New York Times na capa e orelhas que rasgam seda, foi difícil compreender que tanto os críticos quanto a catalogação da livraria haviam cometido um erro besta. As frases diziam que aquele era um livro de terror e ele se encontrava na seção “livros de terror”. A sinopse, no entanto, me indicava uma típica ficção científica, repleta de referências, propositais ou não.
“Caixa de Pássaros” (Intrínseca, 2015) é o primeiro romance de Josh Malerman. O tratamento dado ao livro o faz passar por simplório. Mas, embora seja seco e descambe aqui e ali para aspirações cinematográficas aparentemente gratuitas (daquelas que fazem o leitor enxergar o autor de joelhos para produtoras), “Caixa de Pássaros” é herdeiro de uma linhagem potente da ficção científica e faz jus a essa esquisita família. Malerman concebe um surto global de mudança comportamental que rapidamente dá cabo do modo de vida vigente no início do século XXI. Através da TV, do rádio e da internet, as personagens tomam conhecimento de casos de insanidade que resultam na morte do sujeito afetado e muitas vezes de quem se encontra ao seu redor. Sem precisar recorrer à explicações biológicas ou mortos-vivos, Malerman dispõe o leitor no mesmo cenário de incompreensão e desinformação que constrói para suas figuras. Quando os virais de internet e os jornais sensacionalistas conquistam a credibilidade sobre uma teoria absurda, as pessoas trancam-se em casa e cobrem todas as janelas. De acordo com as notícias, as mudanças comportamentais registradas seriam consequências do contato visual com algo desconhecido e incompreensível para os seres humanos. Constantemente em dúvida sobre a veracidade da origem do surto, as pessoas perdem o contato umas com as outras e somente saem de casa com os olhos vendados.
O livro divide-se em duas rotinas: uma casa de sobreviventes, na qual a personagem principal se abriga para levar adiante a gravidez, descoberta logo no início da narrativa; e a jornada dessa mesma personagem através do rio, acompanhada de seus dois filhos, sem que qualquer um dos três possa abrir os olhos. Os capítulos intercalam os dois cenários e fornecem, aos poucos, os dados com os quais o leitor pode formar o entendimento das ações da mãe e da condição do mundo em ruínas.
Foi a segunda rotina do livro que me atiçou, de imediato, as lembranças. A aventura às cegas através do rio, num mundo já marcado pela ausência dos humanos, sustentada pela mortiça esperança da protagonista de que haja um futuro similar ao seu passado, trouxe uma sensação próxima da experimentada em “A Jornada da Esperança”, de Brian Aldiss. O romance, de 1964, apresenta um futuro no qual os humanos se tornaram estéreis. Numa sociedade composta, em grande parte, por idosos e sem a perspectiva de continuidade da espécie, supostamente não haveria razão para trabalhar construtivamente. O esforço narrativo de Aldiss, nesse caso, mantém uma centelha de esperança envolta por camadas e camadas de desânimo. Tanto em Aldiss como em Malerman, o ser humano deixa, por alguns instantes, de ser o item mais caro do planeta. Ambos levam a narrativa na direção da frustração dos personagens enquanto alimentam o ponto de fuga numa geração que não obedeça aos mesmos parâmetros que todas as anteriores.
“A Jornada da Esperança” foi o primeiro nó a se evidenciar. Logo, uma trama de narrativas pós-apocalípticas começou a ser tecida em minha biblioteca mental. Cenários e passagens irmãs podem ser encontradas em “The Road” (2006), de Cormac McCarthy, e “The Children of Men” (1992), de P. D. James. Nesses casos, as crianças simbolizam o mesmo “reboot” sublinhado por Aldiss: se nós não sobrevivermos, então há esperança.
Essa lógica também é seguida (e subvertida) em “Where Late the Sweet Birds Sang” (1976), de Kate Wilhelm. O livro de Wilhelm nos faz repensar, através de diversos giros afirmativos, a desestruturação do mundo conhecido como solução ou condenação da humanidade. A história mostra-se bastante atual, ao estabelecer o cenário pós-apocalíptico como consequência de graves mudanças climáticas. O declínio do mundo, em “Where Late the Sweet Birds Sang”, não diz respeito apenas à humanidade, mas comporta a esterilidade de todo o planeta. Sem a possibilidade da reprodução natural, os últimos humanos apostam na clonagem como estratégia para, em algumas gerações, retornarem a estabilidade biológica. Tal estratégia resulta na gradativa destruição das vontades individuais, na mudança de ótica sobre a reprodução “natural” e na imprevisibilidade dos encadeamentos ecológicos.
Uma premissa parecida pode ser lida em “The Death of Grass” (1956), de Samuel Youd (como John Christopher): diante de uma praga que atinge todas as plantações do planeta, o ocidente civilizado recorre às suas atitudes belicistas e define o destino final da humanidade. Por ser uma narrativa pensada antes das últimas transformações nas tecnologias de comunicação, Christopher considera as atitudes dos sobreviventes, durante e após o apocalipse, como repetição e retorno aos nossos supostos comportamentos primitivos. Ainda assim, a atmosfera pintada para a catástrofe aproxima “The Death of Grass” da “quase desistência” dos sujeitos apresentados por McCarthy, James, Aldiss e Malerman.
É justo considerar que o efeito de “quase desistência”, no caso desses quatro autores, relaciona-se com o esforço de percorrer um caminho sem volta. Um dos primeiros exemplos marcantes de uso da aventura de descoberta da paisagem pós-apocalíptica é “Daybreak” (“Star Man’s Son”), de Andre Norton, publicado em 1952. Norton descreve a condição do mundo 200 anos após a hecatombe nuclear, através do esforço de sobrevivência do jovem Fors, expulso do Clã Puma por ser um mutante. Fors desce o rio na companhia de sua gata gigante semitelepática Lura, encontra outros clãs e compreende que cada uma dessas comunidades apresenta qualidades necessárias para a formação de uma sociedade completa. Embora não seja uma influência assumida, essa história é muito parecida com a largamente conhecida “A Boy and His Dog”, publicada por Harlan Ellison, em 1969 (adaptada para o cinema em 1975, por L. Q. Jones), narrativa na qual um garoto explora um mundo devastado pela guerra nuclear em companhia de seu cachorro, com o qual se comunica telepaticamente. Ambos os casos respondem, ainda, ao conto “By the Waters of Babylon”, de Stephen Vincent Benét, publicado como “The Place of Gods”, em 1937. A grande diferença talvez se encontre no tipo de jornada escolhida por Benét, que se deita para o lado espiritual.
Já por tocar no tópico “influências ditas e não ditas”, deve ser referenciada a novela “The Day of The Triffids” (1951), de John Wyndham. Com forte rebatimento no rádio, na TV e no cinema, a história de Wyndham leva o desconforto da cegueira para o leitor como tática para manter o receio do desconhecido, presente em todas as páginas. Após a queda de um meteoro, a população de Londres fica cega e deve lidar com uma cidade caótica, na qual as plantas carnívoras são a principal ameaça. Adaptada para o cinema em 1962, para o rádio em 1956, 1968 e 2008 e para a TV em 1981 e 2009, “The Day of The Triffids” dificilmente não seria de conhecimento de Malerman quando concebeu “Caixa de Pássaros”. Tal influência coloca Malerman alinhado com alguns momentos de “Guerra dos Mundos”, de Wells, publicado em 1898. Penso especialmente na passagem pessimamente transposta para o cinema, em que o protagonista permanece longo tempo escondido dos extraterrestres junto a um padre covarde, o qual não está psicologicamente disponível para ouvir suas esperanças. Toda a rotina que Malerman estabelece na casa dos sobreviventes, em seu romance, abriga o mesmo ar entediante e simultaneamente instigante do esconderijo de Wells.
Em resumo, gostei desse livrinho.
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