
Pieter Bruegel, o Velho, “A batalha entre o Carnaval e a Quaresma”, 1559. Pintura a óleo sobre madeira que mostra um burgo da época durante festejos do Carnaval. Cada uma das dezenas de personagens representados na pintura está em uma ação que pode ser interpretada como elemento simbólico para as tradições locais.
Texto de Rodrigo Hipólito
Postado primeiro em Seleta Envelhecida, em 8 novembro de 2009
A obra o holandês Pieter Bruegel, “O Velho”(1525/30-1569), permite uma explanação geral de fácil compreensão da estrutura e das práticas dos festejos europeus de mais de cinco séculos atrás. Em alguma medida, essas são práticas que permaneceram e/ou influenciaram os festejos brasileiros. Digo “em alguma medida”, pois seria inocente fazer uma ligação direta entre o Carnaval europeu e a catarse brasileira, ainda mais depois de tanto tempo. Não seria correto afirmar que o Carnaval nasce como “puramente” uma festa cristã, tampouco que o seu reconhecimento histórico tenha sido rápido e nítido. Como todo o tipo de manifestação social complexa e longeva, o Carnaval agrega elementos de diversas culturas, muitas delas desprezadas pelas narrativas históricas dominantes.
Dito isso, vamos pensar em um dos trabalhos de Bruegel e nas representações do período do Carnaval na Europa de sua época. Para a compreensão da maneira como o Carnaval era visto e das mudanças ocorridas através dos tempos, é necessário um vislumbre no calendário que abre caminho até a véspera da Quaresma[1] e que a ultrapassa. Ainda que, no Brasil, os desfiles de Escolas de Samba e festejos de diversas regiões tenham conferido densidade e aprofundado o carnaval em tradições religiosas africanas, ao falar de representações europeias, deve-se ressaltar que se trata de uma festa religiosa fortemente vinculada às tradições cristãs.

Detalhe da pintura de Bruegel. Na parte superior, ao fundo da pintura, há uma pequena chama em volta da qual algumas silhuetas indistintas se reúnem.
“O Combate do Carnaval e da Quaresma”, de Pieter Bruegel,[2] de 1559, dispõe os pontos mais relevantes do calendário cristão para a existência do Carnaval. A chama no fundo da pintura é o nascimento de Cristo, o Natal. Seguido da coleta dos três reis magos. A coleta é feita em forma de procissão. Assim apresentada, a passagem dos reis magos da margem para outra procissão, que abre as comemorações do Carnaval na Idade Média, a procissão dos leprosos.

Detalhe da pintura que mostra a procissão da Coleta dos Reis Magos.
Aqui, chegamos a um ponto de base do Carnaval: é a festa do inverso, onde a estrutura, os papéis sociais, podem ser invertidos, numa permissividade purificadora. Somente nesse período os leprosos poderiam sair para as ruas e participar da vida em sociedade.

Detalhe da pintura que mostra a procissão dos leprosos.
O Carnaval antecede a Quaresma, período de jejuns e de sacrifícios. Antes da chegada dos quarenta dias de penitência, o Carnaval exacerba as vontades, diverte, ultrapassa os limites do bom-senso; é a despedida mundana antes da entrada no período de proibições.
Após a procissão dos leprosos, o quadro de Bruegel nos mostra a Epifania.[3] No ideal de Idade Média ali representado, as mulheres não participavam dos festejos do Carnaval, de modo que os homens se fantasiavam de mulheres (crianças, damas, prostitutas, velhas, bruxas) e saiam para as ruas para brincadeiras as mais variadas, numa inversão de papéis somente permitida nesse período.

Detalhe da pintura que mostra a Epifania, com destaque para o homem gordo sentado sobre um barril de vinho e empunhando um espeto de churrasco com cortes de carne.
O Carnaval, nas datas que conhecemos (três dias anteriores à Quarta-Feira de Cinzas) é mostrado por Bruegel na parte inferior esquerda do quadro, com jogos, fantasias e instrumentos musicais improvisados. Na Terça-Feira Gorda, ao centro inferior do quadro, a cena que o intitula. Um açougueiro corpulento, montando um barril de vinho, com um chapéu de galo e um espeto de carne, é o Carnaval, que tenta expulsar a Quaresma. Esta é representada por um homem fantasiado de velho, com uma lança de peixes, uma colmeia cheia de mel na cabeça e, aos seus pés, frutas, pão e queijo.

Detalhe da pintura que mostra o Domingo de Ramos.
Na sequência, encontramos o Domingo de Ramos, o Domingo dos Cegos e na Páscoa, a ressurreição. Assim, tudo pode, novamente, começar em mais um ano.
Bem no centro do quadro de Bruegel, é possível reconhecer uma pequena figura com metade do corpo em vermelho e outra metade com listras azuis e brancas. Essa espécie de Polichinelo é um ótimo exemplar da figura típica do Carnaval. A figura dividida ao meio é como o Carnaval, que se desenvolve entre dois lados, um lado (listrado) onde pode haver a inversão, a troca, o engano, o corpóreo, e um lado espiritual (vermelho), o pleno, o imutável, a penitência, o sacrifício, o sangue divino. O Carnaval é quando as práticas do corpo encontram as práticas do espírito.

Detalhe da pintura que mostra o personagem do Polichinelo.
[1] Quaresma remete ao período de quarenta dias entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Missa da Ceia do Senhor, a quinta-feira da Semana Santa. Simbolicamente, esse seria um período de reflexão espiritual, em preparação para a Páscoa, e sua prática remonta ao século IV.
[2] Bruegel pode ser considerado um dos primeiros artistas marcantes do Maneirismo dos Países Baixos. Seus trabalhos refletem tanto os atritos religiosos que formavam a conjuntura da região naquele período, quanto misticismos do corriqueiro.
[3] Epifania, ou “manifestação”, seria como Jesus “se dá a conhecer”. Normalmente, o aparecimento deste termo remonta a três momentos da narrativa cristã: Epifania dos Reis magos, Epifania de São João Batista no Jordão, Epifania do milagre de Caná.
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