
Imagem de capa. Castrima Comm. Ilustração de Judd Mercer. Grande caverna repleta de cristas azulados e arroxeados, com muitas áreas escuras. ao centro e ao fundo, há estruturas de habitações e pontos de luz artificiais. Ao centro, mais à esquerda, pequenas silhuetas de pessoas caminham sobre plataformas e escadas.
Texto de Rodrigo Hipólito
“O céu de pedra” é o terceiro volume da trilogia “A Terra Partida”. Leia as resenhas dos dois primeiros volumes, “A quinta estação” e “O portão do obelisco”.
Jemisin, N. K. O céu de pedra. Trad. Aline Storto Pereira. Trilogia Terra Partida, livro 2. Editora Morro Branco, 2020.
Demorei muito tempo para concluir a leitura dessa série. Segurei até o último momento, pois não queria que acabasse. Tenho dificuldade de me conectar com histórias grandiosas e tendo a abandonar (ou nem mesmo começar) a leitura de épicos. Se eu precisar acompanhar a trajetória de uma personagem de seu nascimento até sua morte, por milhares de páginas, é provável que essa leitura vá para o fim da fila e não saia de lá.
A grandiosidade costuma me entediar. Quando percebo que a rota das personagens centrais de uma longa narrativa está apontada para a “missão” de salvar o mundo, sou tomado por uma pesada nuvem de preguiça. Depois que a preguiça se instala, não basta que essas personagens sejam carismáticas e complexas, que o roteiro seja repleto de reviravoltas e que a prosa seja uma delícia. Vou precisar de algo mais para me convencer a continuar.
N. K. Jemisin desfez qualquer possibilidade de que eu criasse essa barreira, mesmo com uma história épica e heroica. De inicio, ela já nos diz que o mundo acabou e que nada daquilo que será destruído valeria a pena ser resgatado. Mas, isso não resulta em desesperança e prostração. A vida continua, enquanto o mundo acaba.
A realidade descrita foge da maioria das bases de narrativas de fantasia e não pode ser enquadrada apenas em um gênero ou subgênero da literatura especulativa. É preciso ler para compreender a lógica que será seguida pelas personagens. Jemisin faz isso sem qualquer ânsia de que as pessoas que leem compreendam, com exatidão ou plenamente, o funcionamento natural e social daquela realidade. Não há didatismo, tampouco desleixo.
Esse esforço de compreensão, que é exigido de quem lê, pode ser um dos elementos que facilita nossa identificação ou preocupação com os destinos das personagens. Se os sistemas e estruturas que regem a Quietude e todo o planeta estão espalhados pelos três volumes, as motivações e os dilemas das personagens centrais são sempre explícitos.
Chegamos ao terceiro e último volume da série e as memórias de Essun são as nossas memórias. Ela é uma amiga com a qual nos preocupamos, de quem discordamos e por quem lamentamos. Nós sentimos saudades de Alabaster, irmandade por Ykka e Tonkee, carinho por Lerna. Do outro lado do mundo, Nassun nos deixa em apreensão. Não sabemos mais o que sentir e pensar sobre Schaffa. Guardiões sempre nos darão medo e comedores de pedra sempre causarão arrepios. Mas, no ponto em que tudo chegou, todas essas criaturas são pequenas como nós. No meio daquela grandiosidade destrutiva, a única certeza que temos é de que Nassun não deveria estar ali.
“O céu de pedra” nos conta mais sobre os comedores de pedra e podemos entender por que Hoa é o grande narrador dessa história. O livro intercala capítulos nos quais acompanhamos Essun, acordada de um coma após a destruição de Castrima; Nassun, decidida a acabar com o sofrimento do mundo, depois de experimentar os poderes conjuntos da orogenia e da magia; e Hoa, quando ainda não era um comedor de pedra, em um passado distante demais para seres humanos compreenderem em outra escala que não a geológica.
Syl Anagist era o nome da sociedade que dominou e explorou o planeta até seu limite. Com o domínio de tecnologias avançadas e perdidas no tempo, Syl Anagist havia desenvolvido formas de usar o “prateado” da vida para realizar toda e qualquer tarefa ou desejos humanos. A última fronteira seria domar o núcleo do planeta e colocar em funcionamento o mais poderoso motor já pensado, composto pelos obeliscos.
Para afinar o funcionamento dos obeliscos, as classes dominantes de Syl Anagist construíram ferramentas humanas. Os afinadores foram o que restou do genocídio de sua etnia. A consciência de sua cruel origem geraria sua rebelião. Mas, outra revolta também se desencadeava. O planeta sempre esteve vivo e consciente. Agredida, escravizada e ameaçada de destruição, a Terra decide revidar. Esse é o início da guerra que perdura através das estações e é quando surgem os guardiões e os comedores de pedra.
Com a quantidade de informação, histórias e encerramentos necessários para tantas linhas narrativas, poderíamos imaginar que esse seria um livro extenso. Eu gosto que não seja. Durante a leitura, podemos querer mais informações sobre alguns acontecimentos ou passar mais algumas horas com personagens por quem já temos afeição. Mas, não há tempo para isso. O sentido de urgência não permite esse descanso.
Considero um grande acerto da autora a decisão de não arrastar os acontecimentos inevitáveis. Isso poderia agradar parte do público leitor. Afinal, as ligações emotivas que construímos com a história não devem ser desprezadas. Mas, quem escreve não pode obedecer às necessidades emotivas sem restrições, do contrário, a história poderia não ter fim. Jemisin não comete o erro de estender um épico até que ele se torne pueril.
Isso não significa que outras histórias não possam habitar esse cenário. Ainda não li tanta coisa quanto gostaria de Jemisin. Além da trilogia da “Terra Partida”, li seu volume de narrativas curtas, “A cidade que nasceu grandiosa e outras histórias” (não publicado em português, até a conclusão desta resenha). Pelo menos o conto “Fome de pedra” é certo que se passa na mesma realidade ficcional da Quietude.
Talvez a autora já tenha revisitado os cenários da “Terra Partida” em outras histórias. Espero passar por elas. E essa é uma esperança que vem de uma maravilhosa experiência de leitura.
Outras resenhas do livro
– Abduções literárias, texto de Gisele Lopes;
– Momentum Saga, texto de Lady Sybylla;
– Delirium Nerd, texto de Camille Legrand;
– Ficções Humanas, texto de Paulo Vinícius;
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.