Comprei um smartphone novo há dois anos. Acompanhar os avanços nos mecanismos de comunicação é importante. Não quero estar fora do mundo real. Preciso conversar com as demais pessoas e saber o que acontece Agora. Mas, meu smartphone não é mais novo. Ele já era algo barato quando comprei. Ainda assim, ele funcionava tão bem quanto os mais caros, assim como um anel de ouro é tão anel quanto um anel de madeira.
Uma semana após comprar esse “telefone” (que poucas e forçadas vezes utilizei para tal função), uma queda de cinquenta centímetros estilhaçou a delicada tela touch. Coração apertado, frio no estômago, mãos a segurar o rosto, descrença e pena. O dinheiro gasto? Não, era um aparelho barato. A decepção por ter esperado tanto tempo para esse desperdício? Não, pois não houve a menor intenção de adquirir um aparelho de última geração. Qual valor simbólico essa coisa possui para atingir como uma agulha o poro da perda?
Há quase trinta anos vi um aparelho televisor pela primeira vez. Tubo catódico envolto por plástico cinza, imagens em preto e branco, com poucas gradações. 20 polegadas? Lembro-me nitidamente das minhas primeiras reações. “O que” estava a ser mostrado pouco me interessou de imediato. Enquanto não me foi possível atingir a mínima compreensão de “como” aquele micro teatro surgia magicamente na tela, nada vi. Pequenas criaturas, miniaturas de pessoas, como elas “entravam” na caixa? Um dia me contentei com a ideia de que existem ondas, sinais, transmissores, receptores e retransmissores, assim como nos rádios. Ainda sem compreender exatamente como esses “mecanismos” atuam, aceitei sua atuação e passei a aproveitar as imagens como aproveitava os sons que saiam da estação e paravam no rádio. Essa aceitação facilitou a vida quando me vi diante de um telefone sem fio. Mas, não tanto ao ponto de me sentir confortável em utilizá-lo.
De alguma maneira, que ainda não pude rascunhar, tudo que produz imagem luminosa com rapidez maior do que minhas mãos produzem desenhos, virou magia deslumbrante. Décadas depois do primeiro contato com a tela, compreender a simplicidade de muitos desses “mecanismos” de tradução de códigos não ajuda em nada. O smartphone cai, a magia some e o coração esfria.
Em “Hi, Tecnologia!” assistimos uma destruição simbólica da mágica deslumbrante pela vontade do sujeito que se ergue e atua junto à matéria. Angélica Pedroni toma de ferramentas sumariamente mecânicas e sem mistério para torturar, destruir, descarnar e encerrar com o glamour da tecnologia travestida de imaterialidade. Ao aproximar a moto-serra da tela brilhante e gerar os suspiros e comentários do público, “ela não vai fazer isso”, evidencia-se nosso temor de que não haja qualquer espírito por detrás do plástico. Ao dispensar a hesitação no momento de golpear a imagem intocável com a madeira bruta, vemos que o “ocus pocus” digital pouco ou nada difere do porrete seco e morto, disposto a ser manipulado.
Como viver num mundo de imagens intangíveis sem permanecer hipnotizado e simultaneamente não alimentar a ilusão de dominar os objetos complexos? Como integrar os sistemas que criamos e não compreendemos sem permanecermos sentados e passivos? Como praticar algo além de receber e compartilhar? Como fazer dos artifícios mais misteriosos uma natureza tão provisória quanto a nossa? Qual a diferença entre o estereotipo e o comportamento, entre o que parece ser e o que é?
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O que “Hi, Tecnologia!” expõe não é exatamente um sentimento anti-maquínico que existiria em cada um de nós (ao menos naqueles que conheceram o livro impresso antes da imagem digital). O que essa atitude apresenta é uma dúvida sobre a localização dos significadas dos sistemas complexos. Nossa tecnologia é capenga e caguejante, por isso não sustenta satisfatoriamente o peso e a velocidade dos nossos desejos de comunicar. A performance de Angélica Pedroni espelha um cenário desenhado em “Tudo está quebrado”, de Quinn Norton. Quando seu smartphone se estilhaça, quando sua smartTV vira smartradio, quando a tela azul lhe dá bom dia e o trabalho de uma vida não está salvo na nuvem, você se sente desamparado. Você gostaria de abrir o capô, colocar uma sacola em volta do radiador e acelerar para dentro da estrada alagada. É difícil aceitar que na há mistério por detrás da tela de luz. A magia só passa a ser truque quando você nota que por detrás da fumaça e da música retumbante há um monte de fita crepe e uns funcionários doidos pra tomar uma cerveja no final do dia. Se o corpo cansa, sua TV desliga.
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